“Cometa do Diabo” pode ser visto neste domingo
20 de abril de 2024
Gente sergipana – Fio de Deus
20 de abril de 2024
Exibir tudo

Fernando Sávio, jornalista, intelectual, boêmio e amigo

Por Adiberto de Souza

Hoje acordei com saudade de um grande amigo e um dos melhores jornalistas que conheci por essas bandas. Refiro-me a Fernando Sávio Brandão de Oliveira. Nascido em Aracaju, ele morou em Penedo dos tenros oito meses aos 17 anos de idade. E foi naquela cidade alagoana, banhada pelo rio São Francisco, que este brilhante comunicador teve o primeiro contato com o vírus do jornalismo.

Coroinha, ajudou a celebrar missa em latim no Convento Nossa Senhora dos Anjos. Neste ofício juvenil, pôde manusear os livros do frei Libório, despertando logo o gosto pela leitura. Embora muito jovem, editou um jornalzinho, escrito a mão, que abordava o cotidiano penedense e circulava entre os amigos próximos. Uma enorme cabeça de galo ladeava a logomarca do periódico Abraxas, palavra grega de significado místico no sistema gnóstico.

Fernando Sávio na redação do jornal alternativo “Folha da Praia”, em Aracaju

Uma das melhores definições sobre Sávio é do poeta e jornalista Amaral Cavalcante: “Gostava de ser chamado com todos os efes e erres, um nome de quatro costados como exigia sua imponente figura de brancuras europeias e olhar ultramarino. Caía-lhe sobre os ombros uma viçosa cabeleira de fios negros e sedosos, largados ao desalinho para acentuar a rebeldia que imperava nele todo. Grandão, malandro de conversa fácil e boa praça, Fernando trazia no peito uma marca inquietante: a enorme cicatriz que lhe deixara uma cirurgia coronária, riscando-lhe o tórax de cima a baixo, e que ele gozava prazer em mostrar, abrindo sempre a camisa até o terceiro botão, o que o tornava mais notável entre nós”, escreve o poeta.

Quando retornou para Aracaju com os pais e irmãos, Fernando Sávio não tinha dúvida que seria jornalista. E dos bons. Começa a trabalhar como “foca” (era assim que os veteranos chamavam o repórter iniciante) no Jornal da Cidade, com a sede ainda localizada na rua Santo Amaro, quase em frente à Loja Maçônica Cotinguiba. A partir de então, passou por todos os jornais da capital, trabalhando como repórter e editor. No prefácio do livro “Notas de Silas Pelapapa – crônicas de Fernando Sávio”, o jornalista Luciano Correia lembra que o amigo e compadre também “trabalhou nas TVs Atalaia e Sergipe”.

Citado na UFBA

Luciano conta que Fernando brilhou no jornal A Tarde da Bahia, “onde pelejava com o editor-chefe Reynivaldo Brito, que nas aulas do curso de jornalismo da UFBA o apontava como modelo de eficiência”. Na crônica “Perdão, Luz Del Fuego”, Sávio lembra que em A Tarde “recebia um modesto salário de repórter, de maneira que me era forçoso economizar o bastante para pagar o apartamento do Beco Maria da Paz, roupa lavada, transporte, essas coisas, e ainda sobrar dinheiro para as beberragens na Cantina da Lua”, reduto de jornalistas, músicos, boêmios e intelectuais.

Na passagem pelo principal jornal baiano, Fernando também impressionou o jornalista sergipano Alberto Oliveira: “Ele tinha pelo menos duas qualidades (um texto exuberante e a humildade de aceitar modificações nele) e um defeito (foi jornalista 20 anos depois do que deveria ter sido). Escrevia respeitando as vírgulas, a concordância, lapidando o estilo, buscando as palavras certas e a ordem exata delas; o jornalismo de sua época, no entanto, começava a considerar tudo isso uma perda de tempo”.

E Alberto prossegue: “Em A Tarde, trabalhamos em editorias diferentes. Eu, em Economia; ele, em Cidade. No Carnaval, no entanto, quando todas se fundiam porque a edição tinha um único tema – a folia, pude editar suas reportagens. Lembro de uma delas, em que narrava terem colocado uma fantasia (então conhecida como mortalha) na estátua do poeta Castro Alves. Troquei a legenda da foto para algo como ‘antes te houvessem rasgado na avenida que servires ao poeta de mortalha’, empréstimo deslavado de verso célebre do Navio Negreiro. Nunca esqueci da alegria de Fernando, pulando na Redação, por considerar que a edição havia valorizado seu texto”, lembra Alberto, jornalista carirense radicado em Salvador.

Salvo pelo texto

A irreverência era uma marca em Fernando Sávio. Segundo Amaral, “talvez porque nunca se importasse com as consequências do que fazia”. E o poeta tem razão. Certa feita, nosso jornalista se juntou a uma hippie e, depois de todos os goles e fumos, foram à penitenciária de Aracaju insuflar os policiais a soltarem os detentos, “estes pobres injustiçados”. Foram presos!

Para agravar a situação da dupla de “malucos”, o sargento que lavrou o flagrante propôs que os enquadrassem na Lei de Segurança Nacional. O coronel responsável pelo caso e que fez questão de interrogar Fernando no Quartel da Polícia Militar, alí na rua Itabaiana, também achou uma insubordinação sem limite a atitude do jornalista. Diante do réu confesso, o oficial ponderou: “Só não ferro com você porque adoro suas crônicas na Folha da Praia”. Dito isso, encerrou o Inquérito Policial Militar.

Colega de Sávio na Gazeta de Sergipe e no jornal alternativo Folha da Praia, o jornalista Carlos Magno diz que “ter convivido com Fernando foi um privilégio. Ele foi o cara mais inteligente e interessante que conheci na vida. Escrevia com estilo inconfundível, seu texto era deslumbrante, não deixando nada a dever aos grandes da literatura, como Garcia Marques e João Ubaldo Ribeiro. Era um excelente editor e pauteiro. Um repórter completo, levantava tudo sobre a notícia e escrevia de forma objetiva e factual. Irreverente, possuía um humor cortante, mas era também um amigo doce e cativante”, frisa.

Carlos Magno lembra de como ele e Fernando terminaram uma noitada de boemia: “Na madrugada, o convidei para dormir no meu apartamento, que era vizinho ao escritório de um advogado trabalhista. Alí, desempregados faziam fila logo cedo para serem atendidos pelo causídico. Acordei às 8 horas, com dezenas de peões dando risadas. Deitado na sala, com a porta aberta para espantar o calor, meu amigo estava nu em pelo e roncava igual a um porco. A síndica, uma senhora de óculos fundo de garrafa, batia palmas bem forte para acordá-lo. Quando Fernando abriu os olhos, ela bufou: ‘Bonito isso, né, moço?’ Ainda bêbado, ele apenas resmungou: ‘Ahhhh!’. Virou de lado e voltou a roncar bem alto. Pedi desculpas à síndica e fechei a porta”.

Segundo o jornalista Nestor Amazonas, Fernando não era um único ser. “Ele possuía vários personagens, talvez cópias dele mesmo, como no filme Multiplicity, que no Brasil se chamou ‘Eu, Minha Mulher e Minhas Cópias’. As cópias que habitavam Fernando se parecem, mas sempre há uma característica diferente que predomina. Assim vi e vejo Fernando Sávio. O corpo é o mesmo, mas mudam o olhar, o humor e a forma de viver a vida. Impressionava-me como o jornalista ácido, quase brutalizado por seus valores, se adocicava quando minha filha Nara, então com dois anos de idade, alisava a barba dele… Fernando se derretia, era ternura pura. Em todos, se destacavam a inteligência intensa, a disposição para o embate e o humor como arma ferina. Deixou saudades em todos eles, Fernando, o Sávio…”.

Candidato a governador

No bar e restaurante Cacique Chá, localizado no centro de Aracaju e reduto de jornalistas, boêmios, empresários e políticos, funcionou o “comitê político” da fictícia candidatura de Fernando Sávio a governador de Sergipe, em 1986. Ao perceber chegando para almoçar um prefeito do interior, famoso por suas falcatruas, o nosso “candidato” o indagou: “Prefeito, sabe qual será meu primeiro ato como governador?”. Ao ouvir um “não” do político, ele emendou: “Nomeá-lo secretário da Fazenda”. Diante da alegria do gestor interiorano e da surpresa de todos em sua volta, Fernando arrematou: “E sabe qual será meu segundo ato?” Ao ouvir um outro não,  Fernando largou a tamancada moral: “Exonerá-lo como ladrão”. Precisa contar a confusão que se formou? Aff Maria!

A saudosa jornalista Ilma Fontes contou certa feita que Fernando lhe disse como fumou folhas de alface e curtiu o maior ‘barato’ só de pensar que estava de fato lombrado. “Eu sempre soube que Fernando Sávio bebia para ficar mais terreno, mais pesado, menos voador”, afirmou Ilma, que também era médica psiquiátrica.

E ninguém melhor do que o poeta Amaral Cavalcante para fechar estas mal traçadas linhas sobre este inesquecível amigo, que morreu de cirrose, em 21 de maio de 1989, com apenas 35 anos de idade: “Fernando Sávio Brandão de Oliveira era, sobretudo, um boêmio consciente da sua genialidade, um homem emocionado com a sua própria capacidade de alumbramento, um escritor completo de bem humoradas convicções, um letrado de bem com a sua escrita e um amigo bom pra caralho”. Saudade de você, amigo!

   * É editor do Portal Destaquenotícias

 

 

 

Compartilhe:

2 Comments

  1. Savinho, um cara cabeça..

  2. Luciano Sávio disse:

    Fiquei feliz em conhecer algumas histórias. Obrigado Adiberto

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *