Por Lelê Teles *
“ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos…” 1 Coríntios 13:1
Que língua falam os anjos?
Essa é a pergunta que martela na cabeça dos brasileiros desde que o país assistiu, estupefato, ao estranho espetáculo em que dona Michelle, aos pulos e aos gritos, comemorava mais um gol que o marido marcara contra o Brasil.
Por enquanto, tá 7×0 pra eles.
O Necrarca, esse era o motivo de tamanho alvoroço, acabara de emplacar na Suprema Corte um sujeito descrito como terrivelmente evangélico; sabe-se lá o que diabos isso significa.
No entanto, o mais inusitado de tudo aquilo foi que Michele, no inebriante transe felicitativo, abrasada pela chama do Espírito Santo, balbuciou alguns vocábulos em um idioma desconhecido.
“Decanta Sharababaia…”
Eu estudei japonês, latim, inglês, espanhol e francês, e não consegui discernir a origem daquela novilíngua.
Estava claro pra mim que não derivava de nenhum vernáculo românico e tampouco se parecia com qualquer idioma oriental.
Encucado, mandei o video pelo zap para o meu oráculo, o sapientíssimo Cacique Papaku, polímata sem nenhuma formação formal.
Papaku, que é poliglota e já escreveu ensaios de filologia e filosofia da linguagem, além de ser resenhista da gramatologia de Derrida, do Cours de Linguistique Generale, de Saussure, do Crátilo de Platão e de toda a obra de Wittgenstein, fez um breve estudo sobre o anjês e me respondeu.
Papaku diz que não encontrou, entre as mais de 7 mil línguas ainda faladas neste mundo, um tronco linguístico de onde poderia ter se originado essa estranhíssima língua sem idioma.
“É originalmente agramatical”, disse o sábio de penachos, “não se pode construir um sintagma sem uma definição clara do que seja verbo, sujeito e objeto”, finalizou, remetendo ao gerativismo de Noam Chomsky.
“Então só pode mesmo ser coisa divina”, obtemperei.
“Não pode ser outra coisa”, disse-me, “ou é isso ou é picaretagem”, concluiu.
Voltei-me aos meus alfarrábios.
Compilei diversas falas de pastores em cultos e consultei vários livros na minha biblioteca, na vã tentativa de traduzir alguma frase.
“Champollion conseguiu traduzir a língua egípcia sem nunca ter ouvido ninguém falá-la”, eu disse a Papaku.
“Mas havia a Pedra de Roseta, o idioma que não pode mais ser falado ainda pode ser lido, os egípcios deixaram registros escritos; não sabemos os fonemas, mas temos os grafemas”.
Os anjos são ágrafos, eu pensei, e isso dificulta tudo.
Embora Deus tenha escrito uma única vez, na ocasião em que pirografou uns mandamentos para Moisés, ele o fez em hieróglifos, uma vez que o seu interlocutor era egípcio.
Voltei ao livro negro em busca de respostas.
Relata-nos a Bíblia que as línguas faladas no mundo, todas elas, não são uma dádiva, como pensam alguns gerativistas ingênuos, mas um castigo, uma maldição.
Toda essa confusão de grego, japonês, alemão e italiano só existe porque, certa vez, os homens tiveram a audácia de construir uma torre altíssima, no afã de tocar as barbas de Deus.
O barbudo, irado, lançou um raio e demoliu o zigurate, fazendo com que cada um daqueles insolentes falassem uma língua diferente, criando uma confusão dos diabos.
Portanto, línguas é uma maldição terrena, no céu há uma única língua.
Os anjos, veja a que conclusão chegamos, só podem falar a língua de Adão.
Essa língua adâmica foi o primeiro de todos os idiomas falados aqui na terra e os seus primeiros falantes foram Adão e Eva, Caim e Abel e a sapientíssima serpente.
Durante longas eras, só se falou neste vernáculo por toda a orbe terrestre.
Porém, depois do episódio da Torre de Babel, Deus criou o aramaico, o hebráico, o egípcio e deixou o anjês só para os anjos.
Ou seja, não se fala em “línguas” para se falar com anjos, essa pluralização é fuleiragem, fala-se na língua dos anjos.
No mundo angelical não existe mais de um idioma, que isso de ter muitas línguas é maldição de pecadores, como já foi dito.
Ter o dom de falar em línguas, nos orientou o apóstolo Paulo, é ser como Papaku, poder falar em todas as línguas humanas, poder falar com todos os homens e mulheres em qualquer um dos rincões deste vasto mundo.
É preciso ser poliglota para evangelizar o planeta e, em tempos remotíssimos, era exatamente isso que faziam os anjos.
Veja aqui pelo VAR.
Conta-nos a Bíblia que certa vez um anjo do Senhor desceu dos céus e veio ter com a infante Maria, em sua alcova.
A menina dormia quando, num leve bater de asas, a criatura sussurrou em seu ouvido que ela engravidaria e daria à luz um varão abençoado.
“Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo”, disse Gabriel.
Maria, todos o sabemos, pobre e filha de nômades, era uma adolescente analfabeta e monoglota, não consta que a menina soubesse falar língua de anjo algum.
Logo, deduz-se que o anjo, se foi compreendido, é porque falou na língua de Maria.
Nas cidades de Sodoma e Gomorra também foram vistos, relata o livro negro, uns seres angelicais e alados.
E a população, percebendo que os anjos eram bonitos, passou a assediar os filhos de Deus, gerando um vergonhoso arranca-rabo; tudo isso segundo o Livro.
Ora, toda aquela gente rude, sodomista e gomorrista mal falava o seu próprio idioma, o que deixa claro que a refrega se deu no vernáculo local.
O mesmo pode ser dito do episódio filicida em que Abraão oferece Isaque em sacrifício, sendo dissuadido na última hora por um anjo do Senhor que, agora o sabemos, só pode ter falado com o nômade na única língua que o sujeito compreendia.
Ora, como vimos, os anjos, desde o começo dos tempos, têm falado com homens e mulheres na língua pátria destes infelizes.
Logo, não encontramos razão para que, de uma hora pra outra, essas aladas criaturas passassem a usar a língua materna para ouvir louvores e clamores de pastores de gravata.
Muito menos para servirem de ouvintes para comemorações de primeiras-damas.
E tem mais, observem que jamais o pessoal da tradução de Libras traduz o que os pastores dizem em anjês, porque trata-se de uma língua sem idioma.
E outra, nas igrejas são sempre os humanos a falar na suposta língua angelical, nunca que um anjo desceu para um diálogo cara a cara.
A única aparição não humana que ocorre em templos, nestes tempos, é a da figura do diabo.
E Satanás, e isso é de conhecimento até de ateus, também já fora anjo um dia, e fora portanto, fluente em anjês.
Mas, decaído e com um par de chifres, anda por aí, de templo em templo, a pregar seu desevangelho, fluente em qualquer idioma humano.
O Coisa Ruim é tão versátil em logorreia que chega mesmo a adquirir o sotaque local toda vez que aparece em uma igreja no Goiás, na Bahia ou no Piauí.
E isso eu posso provar.
Eu sempre achei que o Besta-Fera falasse numa língua transilvânica, ou que ainda se virava em anjês, mas qual não foi a minha surpresa.
Semana passada uma garota incorporou o Capiroto em uma igreja de Abadiânia, GO.
Vi pela tevê.
A moça se contorcia toda e grunhia como um animal selvagem.
O pastor, engravatado, subjugando o Sete-Peles que tomava o corpo da jovem goiana, pediu para que o Espírito do Mal se ajoelhasse diante do servo de Deus.
Percebendo a recusa do Demônio, o pastor perguntou porque diabos o Diabo não dobraria os joelhos, ao que Satã respondeu como um legítimo caipira: “uai, ocê num manda em mim”.
Eu pensei, mas com mil diabos, o Diabo é goiano?
Concluo com a seguinte conclusão: nestes templos, no frescor do ar condicionado, não se fala com os anjos, fala-se para os anjos, porque até hoje não consta que estes respondem e se permitem ao diálogo.
Essa falta de dialogia é a prova de que uma língua de mão única não pode ser considerada língua, porque não se encaixa no campo da linguagem, porque carece de um interlocutor ativo.
O que parecem ser palavras, são meros significantes sem significado.
Como o balbuciar de um bebê.
Palavra da salvação.
* É jornalista, publicitário e roteirista.