Por Wagner Lemos *
A Arte é uma menina que nos pega pela mão e nos leva a passear. Muitas vezes, arrasta com ímpeto a estradas de dura realidade e nos põe diante de urgências deste mundo e sacode dentro de nosso peito revoluções de que precisamos. Noutras, seu passeio é mais suave, bem mais sereno e nos desliza em trilhas em que o sonho e a luz nos desapegam de coisas cotidianas e nos permitem pisar nuvens.
Na grande maioria das vezes, contudo, a menina consegue ser serena e impetuosa nos levar a um caminho em que realidade e sonho estão estreitamente alinhavados numa costura de onde não se soltam fios.
Quando é assim, a experiência é mais intensa e, não raro, brotam águas dos olhos e há um descompasso no baú dentro do peito.
“Herói de domingo”, um óleo sobre tela de Sara Cardoso, pintora novel sergipana, me transportou ao universo em que a realidade e o sonho se abraçam.
Na cena prosaica, um menino descamisado, acompanhado de seu cachorro, caminha para casa levando um refrigerante. De chinelo de dedo nos pés, com a noite gravada na sua pele dando-lhes a tez negra, o menino segura com as duas mãos, como quem leva precioso bem, uma garrafa para casa. Uma casa que deve ser bem simples como as demais que compõem o plano de fundo da tela. Sem luxos, sem rebuscamentos, mas certamente um lar, o que faz toda a diferença. Um lugar como aquele em que cresci.
Enchi-me de saudade. Lembrei de meu tempo de menino. Recordei de quando fazia a mesma coisa: de posse de tostões contados, saía perto da hora do almoço de domingo e buscava, na mercearia mais próxima, um refrigerante, pequeno luxo e que era um refrigério em meio a uma vida de adversidades a que estão submetidas as famílias de meninos pobres e pretos.
Muitos anos já passaram desde o tempo em que eu carregava o troféu para aliviar a vida sofrida. Muita lágrima foi derramada desde então. Muitas dores e alegrias descompassaram as batidas em meu peito. Cresci. Cresci e rompi estatísticas que mostram que homens negros e pobres têm elevada taxa de mortalidade, sobretudo, por mortes violentas. Ao mesmo tempo em que isso me traz alento também me dói.
Outros que transitavam as mesmas ruas do meu bairro periférico não tiveram destino de vida como o meu. Tornaram-se um número frio na planilha que contabiliza vidas interrompidas. Ter sido exceção me entristece, pois nenhum de nós deveria ter se tornado rabiscos feitos no cimento molhado na improvisada lápide que vedava a gaveta do cemitério público da cidade. Nenhum de nós.
Hoje a saudade desse tempo me consome. É o desejo por uma época em que, como escreveu o poeta, “eu era feliz e ninguém estava morto”. Hoje eu daria tudo para me transportar para essa tela e nela viver para mais uma vez, ao menos, voltar a ser o herói de domingo.
* É professor universitário (UNEB/UFS) e doutor em Literatura Brasileira (USP)