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Lampião Poeta

O legado poético de Lampião ainda não foi reunido

Professor Francisco José Alves

(Departamento de História – UFS)

E-mail: fjalves@infonet.com.br

Virgulino Ferreira (1898-1938) foi uma figura de muitas facetas: amansador de cavalos, almocreve, artesão de couro, sanfoneiro, vaqueiro, estrategista, enfermeiro, costureiro, sacerdote do bando, cantor. A estes múltiplos predicados (focalizados pelos estudiosos), faz-se preciso acrescentar uma outra face do cangaceiro: a de poeta ou versejador.

Essa habilidade do bandoleiro é notificada por algumas fontes. Uma delas, o folclorista Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), assegura que Lampião “fazia versos”.

O vezo poético do cangaceiro também é registrado por Optato Gueiros (1894-1957), oficial das forças volantes, implacável perseguidor de Lampião. Ele informa que, desde cedo, aos 13 anos, Virgulino Ferreira já “tirava versos”. Adulto, no cangaço, continuou tocador de sanfona e versejador, poeta. Diz Optato Gueiros: “Nas horas de lazer Lampião escrevia versos que também cantava acompanhado com a sua sanfona.”

Do estro poético de Lampião ainda dá notícia a professora Aglaé Lima de Oliveira, estudiosa do cangaceiro por mais de vinte anos. Diz ela que, já na adolescência, Virgulino namorava as musas, “tocava sanfona… organizava repentes, era poeta, dedilhava a viola, compunha versos”.

O legado poético de Lampião ainda não foi reunido. O material conhecido é formado de quatro textos. Dois deles foram colhidos e editados pelo major Optato Gueiros. Os dois outros, pelo coronel Filipe de Castro (? – 1981) Os quatro poemas não possuem títulos. Podemos chamá-los pelos seus versos iniciais: “Leitores sendo possível…”, “Para minha infelicidade…” (editados por Optato Gueiros) e “Não sei cuma te compare…” e “Dos combati o mais forte…” (editados por Filipe de Castro).

Consideremos o conteúdo de uma dessas poesias. Vejamos, mais de perto, o estro do cangaceiro.

“Para minha infelicidade…” é uma autobiografia de Lampião em nove estrofes de seis versos. Nela, o bandoleiro fala da infância e adolescência, das primeiras ocupações, do primeiro amor, da sua condição atual, da sua coragem e habilidades, da expectativa da morte.

 O poema, nas cinco estrofes iniciais, narra a vida de Lampião antes do ingresso no cangaço. As quatro estrofes finais contrapõem o “ontem” luminoso à condição atual vivida pelo cangaceiro.

Na primeira estrofe do poema, Lampião lastima a sua condição de cangaceiro, de fora da lei. Diz: “Para minha infelicidade/entrei nesta triste vida.” O cangaço é, como se vê, “infelicidade” e “tristeza”, no dizer do cangaceiro. Ressoa aqui a ideia de sina: o ingresso no banditismo como uma fatalidade imposta pelo destino, pela imperiosa necessidade de vingança.

Prosseguindo o relato (2ª estrofe), Virgulino diz que, ao lembrar da infância, seu coração “bate e chora” amargamente.

Os ensinamentos recebidos do pai e da mãe são relembrados por Lampião (3ª e 4ª estrofes do poema). Da mãe ele diz ter recebido carinho e ensino religioso: “me ensinou a rezar”. Também com ela Virgulino aprendeu “a todos muito respeitar”. Já o pai lhe ensinou a trabalhar no campo. De fato, conforme os biógrafos, Lampião exerceu trabalhos agrícolas, pecuários e comerciais na infância e adolescência.

Na 4ª estrofe, Lampião relembra os seus propósitos na infância: “quis ser um homem de bem/ viver dos meus trabalhos/ sem ser pesado a ninguém.” Note-se, nesses versos, a ética do auto sustento através do trabalho pessoal. Ecoa nesse passo um traço da mentalidade sertaneja na qual Virgulino foi formado.

Ainda neste passo, Lampião recorda um ofício por ele exercido antes do ingresso no cangaço: “fui almocreve na estrada”. Isto é, foi transportador de mercadorias no lombo de animais de carga. A menção não é invenção do bandoleiro. Foi ele almocreve antes de se tornar cangaceiro. O fato é atestado por seus biógrafos e alguns testemunhos de época, gente que o conheceu antes dele ter abraçado a vida de cangaceiro. Vale ainda lembrar, que almocreve foi ofício muito comum antes do predomínio do transporte rodoviário, na segunda metade do século XX. Antes dos caminhões, as mercadorias, no sertão, eram transportadas no lombo das alimárias. Foi a era dos tropeiros ou almocreves.

O coronel Filipe de Castro noticia que Virgulino, antes de ser Lampião, foi almocreve. Informa o militar baiano: “Aos 17 anos mais ou menos [Virgulino] saiu para ganhar a vida e foi trabalhar como almocreve, transportando couros de Uauá-Ba para Pedra (Delmiro Gouveia-Al)”. Não foi longa a carreira de Virgulino como almocreve. Com 22 anos, larga esse ofício e ingressa no bando de Sinhô Pereira.

No poema aqui considerado também há lugar para Lampião revelar um episódio amoroso da adolescência: “Tive também meus amores”. Valendo-se de uma batida metáfora, escreve: “Amei uma flor mimosa/filha lá do meu sertão.” O poeta ainda ressalta o seu propósito, à época, casar com a flor mimosa: “Sonhei de gozar a vida/bem junto a prenda querida/ a quem dei meu coração”. Sobre este amor juvenil de Virgulino temos notícia circunstanciada fornecida pela sua biógrafa-mor, a já citada professora Aglaé Lima de Oliveira. Num capítulo intitulado “Lampião Apaixonado” a autora menciona o namoro de Virgulino com Rosa, uma morena da Ribeira. Ele a conheceu na igreja de Ribeira durante uma festa de encerramento do mês de Maria. A paixão foi imediata. À época, Virgulino tinha 19 anos e Rosa 16. O namoro não evoluiu, mas Virgulino conservou a lembrança do seu primeiro amor.

Depois de evocar esta fase feliz da sua vida, Lampião caracteriza a sua condição atual: “Hoje sei que sou bandido/como todo mundo diz.” E contrapõe o presente ao passado venturoso: “Porém já fui venturoso/passei meu tempo feliz.” E, mais uma vez, recorda o carinho que recebeu “no colo materno”.

A poesia continua (7ª estrofe) com Lampião fazendo um autoelogio como atirador e cantador: “Meu rifle atira cantando/em compasso assustador”. E continua: “Enquanto o rifle trabalha/minha voz longe se espalha/zombando do próprio horror”. Esses versos aludem, creio eu, a uma prática de combate dos cangaceiros: o parraxaxá, isto é, canto de insulto entoado pelos cangaceiros contra seus inimigos. Do parraxaxá dá vivo testemunho o já citado major Optato Gueiros. Revela o militar, evocando um dos seus combates contra o bando de Lampião: “Rompeu-se o tiroteio, acompanhado dos clássicos nomes feios, cantigas e chistes de toda a espécie”.

Outro testemunho desse costume cangaceiro vem do coronel Filipe de Castro, já mencionado. Perfilando o fora da lei, o perseguidor do cangaceiro relata que, durante os combates, Lampião “não ficava calado. Gritava soltando palavras insultuosas aos soldados com adjetivos os mais devassos e nojentos no que era seguido pelos seus cabras”.

O teor ofensivo dos parraxaxás é evidente nesta evocação dos militares. A finalidade era humilhar o inimigo com ofensas morais.

Nas estrofes finais do poema (8ª e 9ª), Lampião manifesta consciência da morte iminente. Também se vangloria da sua coragem (“enfrentar de peito”) e do trabalho que tem dado aos gestores públicos (“vou dar trabalho ao governo”). Por fim, ele revela um desejo: “Morrendo num tiroteio/sei que morro satisfeito.”

Um verso da 8ª estrofe parece indiciar que Lampião conhecia algo da mitologia grega. Falando da sua morte, declara: “enfrentarei o balseiro”. Isto é, o condutor da barca. Teríamos aqui uma alusão ao Caronte? Na religião grega antiga, Caronte é o condutor da barca que leva os mortos pelo rio Estige até os infernos, o reino de Plutão. No dizer de um perito, incumbia a Caronte “a tarefa de passar as almas do Aqueronte para a outra margem do rio”.

Que não se estranhe a hipótese de Lampião ter alguma noção da cultura clássica. Sobre isso, vale lembrar que a mitologia greco-romana, ao lado da mitologia judaico-cristã, é uma das bases da cultura ocidental. Também é oportuno lembrar o hábito de leitura de jornais e revistas, cultivado por Lampião e atestado por diversas fontes côevas. Além da leitura de periódicos o cangaceiro também era leitor de cordéis. Alguns deles deplorando, outros louvando os seus feitos.

Quanto aos cordéis, devemos lembrar que os autores destes textos são verdadeiros intermediários culturais, fazendo um liame entre a alta cultura e a cultura popular. Fiapos da cultura clássica, assim, chegam aos ouvintes por meio dessas “pontes”.

Outro possível canal por meio do qual Lampião travou contato com a ideia do Caronte são os almanaques populares. Esses impressos tiveram ampla difusão no Brasil do século XIX e das décadas iniciais do século XX.

O exame aqui esboçado parece evidenciar alguns pontos. O principal deles é, a meu ver, patentear mais uma dimensão do cangaceiro: a de poeta. Outro ponto é mostrar que Lampião, ao lado da brutalidade, também possuía sentimentos muito humanos: o amor aos pais e a nostalgia do amor juvenil e a elevada autoestima. Por fim, o texto mostra o quanto Lampião estava imerso no seu universo cultural: foi, em grande medida, um sertanejo do seu tempo e do seu contexto.

Fontes utilizadas:

CASCUDO Luís da Câmara. Lampião. Dicionário do Folclore Brasileiro. 9 ed. São Paulo: Global, 2000. p. 324-325; 485.

GUEIROS, Optato. Lampião. 4 ed. Salvador: Livraria Progresso, 1956. p. 21, 69, 232, 258, 260.

OLIVEIRA, Aglaé Lima de. Lampião, Cangaço e Nordeste. 2 ed. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1970. p. 23; 25-27.

CASTRO, Felipe. Derrocada do Cangaço. 2 ed. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2008.p. 133, 141.

GRIMAL, Pierre. Caronte. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. 4 ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000. p. 76.

Aracaju – Abril – Julho de 2018.

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