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Lava-Jato: um marco no enfrentamento da criminalidade dos poderosos no Brasil

* Profa. Dra. Denise Leal Fontes Albano Leopoldo

Espero que no futuro os livros de História façam jus àquilo que representa um marco na construção de um país digno de ser identificado como um Estado republicano e democrático de Direito.

Ao longo de quase três anos, a Lava-jato vem desvelando que o país estava carcomido pela corrupção e pela desfaçatez. Aqueles que se arvoravam paladinos da ética e promotores da justiça social se revelaram grandes larápios do dinheiro público e estelionatários da esperança do povo brasileiro.

Confirma-se que as colaborações premiadas, prisões cautelares e conduções coercitivas são meios legalmente válidos e moralmente defensáveis. Graças a elas tem sido possívelenfrentar uma criminalidade do poder que em nosso país alcançou um estágio sem paralelo em qualquer outra democracia do mundo.

Apesar de vozes contrárias, tenho a convicção de que investigadores, procuradores e magistrados envolvidos nos casos apurados pela Lava-jato vem atuando, no geral, dentro dos marcos da lei e do respeito às garantias do devido processo penal.

Reconheço que podem ser discutíveis algumas medidas excepcionais (mas, ressalte-se, legalmente previstas) como prisões cautelares. No entanto, o que está acima de qualquer discussão é que a Lava-jato nos colocou diante daquilo que um grande teórico do Direito Penal, o italiano Luigi Ferrajoli, denominou criminalidade do poder político e econômico.

Ao contrário de quem alardeia que vivemos tempos em que se aplica um Direito Penal de Exceção, afirmo que a exceção verdadeira é a Lava-jato ter chegado até onde chegou. Na esteira do julgamento do Mensalão, ela vem rompendo com a lógica de um sistema penal que atingia exclusivamente os mais pobres e que deixava os criminosos ricos e poderosos livres em suas empreitadas criminosas.

Um breve levantamento nas decisões dos tribunais brasileiros até cerca de uma década atráspermite constatar que esses réus de etiqueta praticamente não eram importunados em sua carreira criminosa. Quando eventualmente eram flagrados e um procedimento criminal instaurado contra eles, a contratação de caros escritórios de advocacia era garantia certa de impunidade.

Hábeis e competentes advogados criminalistas que sabem trabalhar com prazos e recursos,comumente recorrem a todos os válidos meios legais para postergar o andamento do processo. Buscam a todo custo, como lembra Michel Foucault, a tábua de salvação desses incomuns réus: a velha e boa prescrição.

Quando essa primeira opção não era exitosa, a outra estratégia era a defesa investir pesado na alegação da inexistência ou fragilidade das provas para buscar a absolvição.E em julgamentos feitos por juízes (lembrando que nenhum desses crimes é da competência do Júri popular) era bastante comum essa alegação ser acolhida quando se tratava dessa qualidade de réu e, mesmo quando não alcançada uma absolvição, o STF ou outros tribunais acabava revertendo as condenações.

Não faço aqui qualquer crítica ao fato de colegas advogados jogarem com as regas do jogo processual, e reconheço que são estratégias válidas, desde que não sejam usadas de forma abusiva.Ocorre que também são igualmente válidas as novas estratégias e meios para produção de provas e de acautelamento do processo diante de um tipo de criminalidade muito mais intrincada, complexa, poderosa e perigosa como é aquela que se enraíza nas instituições e debilita nossa democracia.

Para mostrar que esses supostos excessos não resistem a um exame mais cuidadoso, tomemos o caso do tríplex e do sítio cuja propriedade é atribuída a Lula. Quem conhece a lei e a doutrina sobre lavagem de dinheiro, que se caracteriza exatamente pela fraude ou ocultação da propriedade de bens oriundos da prática de crimes, sabe que temos ali um caso típico desse crime.

Reconhece também que ali existetodo um conjunto de provas e evidências afasta qualquer dúvida razoável sobre o fato de que a família Lula da Silva é a real proprietária desses imóveis e, a despeito disso tudo e de seus esforços para atrapalhar as investigações, Lula tem respondido a esses processos em liberdade.

Lembro também o episódio de alguns meses atrás em que Delcídio Amaral foi flagrado oferecendo dinheiro ao filho de Nestor Cerveró – ex-diretor da Petrobrás envolvido nos esquemas de desvios na estatal – em troca do seu silêncio e garantia de fuga para a Europa. Outro caso nebuloso foi oda carta de nomeação de Lula como ministro para afastá-lo da Justiça Federal do Paraná. Todos esses casos revelam que se Lula não fosse quem é, ou seja, em respeito à sua condição de ex-presidente e líder popular, há muito tempo já estaria preso provisoriamente.

Portanto, resta alguma dúvida de que esses envolvidos fizeram e continuam a fazer de tudo para sabotar a Lava-jato? Que muitas das provas já foram destruídas sob o comando dos que estavam no topo do esquema criminoso? Que as conduções coercitivas viabilizaram basicamente assegurar que buscas e apreensões fossem cumpridas sem que os alvos criassem obstáculos às diligências? Que as colaborações premiadas decorrem muito mais da certeza de uma condenação diante da consistência das provas de autoria e materialidade dos crimes praticados por esses réus do que da propalada “tortura psicológica” decorrente das prisões cautelares?

Em pesquisas que venho fazendo com meus alunos e alguns colegas há cerca de um ano em todas as sentenças da Lava-jato, surpreende a quantidade imensa de provas documentais que comprovam transferências milionárias de doleiros e outras pessoas ligadas a empreiteiras para contas no exterior em nome de políticos brasileiros e seus familiares. Também há inúmeros contratos e planilhas periciados que atestam todo tipo de fraude para desviar dinheiro público.E, desmontando o discurso de que o PT e seu líder maior são vítimas de perseguição, as sentenças até aqui prolatadas indicam que os políticos condenados em maior número são, em primeiro lugar, os do Partido Progressista, sucedidos pelos do PT e, na sequência, os do PMDB.

Assim, reconheço que o momento é de perplexidade diante de fatos tão assombrosos.Todavia,devemos louvara coragemnecessária, o profundo conhecimento jurídico, acompetência técnica e o espírito cívico de um conjunto de brasileiros que ousou desbaratar esse grande esquema criminoso que, por pouco, não tornou o país uma cleptocracia.

 * Professora do Curso de Direito da Universidade Federal de Sergipe

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