Marcos Cardoso*
Marcelo Déda era um sedutor. A verve irrequieta, a simpatia encarnada no jeito familiar de se relacionar com os iguais e os diferentes, o raciocínio ligeiro, a capacidade de perscrutar a memória prodigiosa e colocar as palavras certas nos lugares adequados faziam dele um homem fascinante. Claro que o fato de ser bonito contribuiu para torná-lo mais atraente. E vaidoso.
A jornalista Mônica Gugliano, que cobria a Câmara Federal quando Déda lá chegou em 1995, aos 34 anos, fez um depoimento para O Globo lembrando que, inteligente, habilidoso político e bom frasista, ele logo virou uma referência para os jornalistas que cobriam as atividades da Casa.
“Mas estaríamos faltando com a verdade ou omitindo uma partezinha dela se ignorássemos que o deputado de risada franca e aberta, gentil no trato com a imprensa, conquistava corações”, ressalta ela, acrescentando: “Déda era um colírio para os olhos da mulherada. Ao ser eleito líder da bancada petista, as jornalistas, informalmente, passaram a referir-se a ele como líder e gato”.
Quando se despediu da liderança, ainda segundo Mônica, teria dito: “Finalmente não sou mais líder. Agora, sou só gato”.
Mas por trás daquela persona que irradiava beleza, gentileza e alegria escondia-se um aristotélico animal político. Puro sangue. Intelectual sabedor de sua função social, Déda se destacou pela paixão como procurou compreender desde sempre a política, essa arte complexa que rege a relação entre cidadãos e sociedades. Era possuidor de sensibilidade aguçada para apreender o sentido do interlocutor e ao mesmo tempo perceber os anseios coletivos.
Exigente e às vezes até rude com quem trabalhava com ele, mas sin perder la ternura jamás, tinha a humildade de buscar aprender com os adversários e a capacidade de perdoar. Tornou-se amigo e aliado de primeira hora de Edvaldo Nogueira, o ex-estudante de medicina comunista que derrotou o seu grupo na disputa pelo DCE da Universidade Federal de Sergipe. Edvaldo sucedeu a Déda na presidência do diretório estudantil no começo dos anos 80, num embate fundamental na formação da sua práxis política.
E em 1987, ao chegar à Assembleia Legislativa com púberes 26 anos, após marcar posição em eleições anteriores para deputado estadual e para prefeito de Aracaju, quando apareceu como estrela em ascensão, Déda se aproximou daquele que mais conhecia sobre a engrenagem e as vicissitudes parlamentares, o deputado e ex-vice-governador Djenal Tavares de Queiroz. O general do Exército, que poderia ter sido o adversário mais duro, deixou-se seduzir pelos sentimentos honestos daquele barbudinho com ideal socialista.
“Seu avô era assim como você. Ele dava a palavra e cumpria”, contou o próprio Déda ao jornalista Osmário Santos (“Memórias de Políticos de Sergipe no Século XX”, 2002), citando comparação do velho deputado-general com o seu avô, jornalista, rábula e também deputado constituinte, de 1947, José de Carvalho Déda. Marcelo inspirou-se na intelectualidade do avô, mas teve contato com a política e com a história da esquerda sergipana na barbearia de seu Edgar Ribeiro, comunista histórico que trabalhava numa esquina da rua Socorro, onde morava o estudante do Atheneu que veio de Simão Dias para concluir o primeiro grau em Aracaju.
O jovem Déda foi um deputado constituinte atuante, que deu coloração importante à Carta Estadual promulgada em 1989. O menino que chamou a atenção na paupérrima estreia eleitoral do PT, em 1982, e se sobressaiu ao só perder para o fenômeno Jackson Barreto na primeira eleição nas capitais pós ditadura, tornou-se ali reconhecido como político de verdade. “Esse garoto daria um excelente deputado federal”, vaticinou o jornalista paulista Ivan Rodrigues, então diretor de jornalismo da TV Sergipe, impressionado com a capacidade de articulação e com o discurso da revelação petista.
Não se reelegeu porque ousou votar a favor da cassação do prefeito acusado de superfaturar obras e serviços, o que pareceu alinhamento com o único governador do PFL, Antonio Carlos Valadares. Pode ter avaliado mal, mas foi por imaturidade e convicção. E o povo sergipano soube reconhecer que ali havia mais do que um suposto algoz do popular e corajoso político emedebista e concedeu-lhe a eleição para deputado federal em 1994.
Voltas que o mundo dá: Valadares e Jackson tornaram-se correligionários e amigos. “Só quem não conhecia o Governador Marcelo Déda poderia duvidar da facilidade com que os adversários se dispunham a lhe estender a mão, tal o respeito que ele lhes dedicava e tamanho o espírito conciliador de que era dotado. Déda fazia da política uma atividade maior, em que o benefício da sociedade era sempre o seu objetivo primeiro. Na sua prática política não havia lugar para mesquinharia, apenas para o diálogo e para gestos de grandeza”, desabafou no Senado o político do PSB que sofreu dura oposição de Déda enquanto governador, no final dos anos 80. Estavam juntos desde a campanha de 2002, quando ele se reelegeu senador e José Eduardo Dutra, candidato ao governo, foi derrotado no segundo turno por João Alves Filho.
“O que iremos guardar de Marcelo Déda é a sua jovialidade e a sua capacidade de aglutinar tantas forças para elaborar um projeto que trouxe muitas mudanças para Sergipe. Ele foi um guerreiro e sua grande obra foi a honradez, a dignidade e a ética que sempre nortearam seu caminho e sua vida pública”, disse o então governador de fato e de direito Jackson Barreto, quando Déda morreu em 2 de dezembro de 2013, há 10 anos, aos 53 anos.
Déda se apaixonou de vez pela política na dura e surpreendente — para os militares — eleição de 1974, quando assistiu na TV a Jackson Barreto e Jonas Amaral, dois resistentes da ditadura que se elegeriam deputados estaduais. Foi a eleição em que Gilvan Rocha, também do MDB, elegeu-se senador, derrotando nada menos que o mito Leandro Maciel. E José Carlos Teixeira elegeu-se deputado federal. Esses são os precursores do que Déda viria a se tornar depois. Só que Déda foi maior do que todos eles.
Ninguém por acaso vence seis eleições consecutivas, duas vezes para deputado federal, sendo o mais votado em 1998, e ganhando quatro disputas para cargo executivo no primeiro turno, duas vezes para prefeito de Aracaju (2000 e 2004) e duas vezes para o governo de Sergipe (2006 e 2010), derrotando o experiente e respeitado João Alves nos dois embates, inclusive quando o negão era o governador do Estado, em 2006.
Nos sonhos de Lula, Déda estaria no Senado em 2015. “Eu acho que estão faltando tribunos com envergadura no Senado e o Déda poderia ser um senador extraordinário. Ele poderia ser o tribuno que está faltando no nosso país”, disse o compadre durante o velório no Palácio Museu Olímpio Campos, acariciando a cabeça daquele com quem guardava uma relação quase de pai para filho. “Além do PT perder um quadro extraordinário como Marcelo Déda, a gente perde uma das grandes realidades políticas desse estado”, concluiu o ex-presidente, uma referência indiscutível.
Como referência também o foi Ibarê Dantas, professor de Ciência Política na UFS, “um homem que foi fundamental em minha formação”, nas palavras do próprio Déda. “Eu lia nos manuais clássicos do Marxismo, ele me trouxe Gramsci, que foi fundamental para que eu mudasse a minha imagem de mundo”.
Ensinamentos que fizeram dele não um esquerdista sectário, um socialista frustrado, mas um homem ciente da grandiosidade de sua função e consciente de que não foi inventado do nada, porque outros vieram antes dele, como sinalizou no discurso de posse no governo em 1º de janeiro de 2007:
“Sou filho de uma geração e, como representante dessa geração, eu sei o que devemos às outras que nos antecederam. Um filho cuja história, com paciência e tempo, tece a sua multifacetada tapeçaria que nos liga a outras eras e a muita gente. Nos liga, por exemplo, a tradição oligárquica de Fausto Cardoso, o grande herói urbano de Aracaju, o tribuno eterno de Sergipe que sacrificou a vida no altar das suas ideias e fez-se símbolo e exemplo para todos os que buscaram a modernização política, a justiça social, a democracia e o fim dos conluios oligárquicos. Não deixa, pois, de me emocionar que justo em 2006, quando a revolta de Fausto Cardoso completou cem anos, um centro-esquerda com forte apelo antioligárquico e indiscutível perfil mudancista conseguisse levantar Sergipe numa revolução pelo voto, produzindo a vitória que hoje me traz aqui à presença de Vossas Excelências para em nome do povo sergipano assumir o governo do Estado trazendo no coração o compromisso democrático e popular e nas mãos as bandeiras das mudanças”.
O que pode ser arrematado com o que disse em maio de 2013, já alquebrado pela doença, ao sancionar o projeto do Proinveste, que garantia financiamento importante para a sua gestão e foi duramente atacado pela oposição: “Não sou capaz de decifrar os enigmas de Deus. Deus é insondável. O que ele está querendo com isso, não sei e nunca saberei. Mas me compete, na história, que é no terreno onde sempre operei, buscar fazer aquilo que me fez Marcelo Déda”. E assim fez.
*É jornalista.