Por Lelê teles *
a manhã sendo.
da janela de casa vejo a cabeça branca do velho pi-cazzo, grafiteiro veterano aqui do bairro, pichando a parede nua da paróquia.
pego o celular e filmo: com o spray ele grafa, em branco, um punho cerrado e erguido.
ao lado, em preto, outro punho, representando o mesmo gesto.
dá um confere na arte e vaza.
às seis da tarde, tomo um cafezinho na varanda enquanto badalam os sinos da igreja.
passa um casal de adolescentes, skatistas; olham o desenho, sacam sprays das mochilas e resolvem fazer uma intervenção:
sob o punho negro, a garota, de cachos nos cabelos, desenha uma argola com uma cruz embaixo; é o espelho de vênus, representando o feminino.
o garoto, de dreads e meio aloirado, o imita e desenha a seta de marte logo abaixo do punho branco.
filmei a dupla, sprays nas mãos, fazendo uma selfie com os punhos ao fundo, sorridentes.
já na madruga, fui à varanda fumar um cigarrinho de artista e qual não foi a minha surpresa: lorrane, a travesti que trabalha como enfermeira no posto de saúde do bairro, saca uns sprays da bolsa.
imagino que quando a bonita tava indo pro plantão, ela deve ter visto o grafite. agora, na volta, resolveu intervir, premeditadamente.
filmo: ao lado dos dois punhos com argolas, lorrane desenhou um terceiro punho, este com as cores do arco-íris.
a parede, que até ontem era muda, começou a falar.
na manhã seguinte, logo cedo, jaburu, o flanelinha que se locomove numa cadeira de rodas, passa pelo desenho, observando-o.
horas depois ele volta com um molecote.
traz consigo, também, um stencil e um spray. coloca o garotinho de pé no seu colo e o pirralho espirra tinta azul no stencil.
pronto. agora, ao lado dos três punhos erguidos, vemos o símbolo que representa as pessoas com deficiência.
jaburu aproveitou e escreveu: “todos juntos.”
à tardezinha, fui regar minhas begônias na janela e outro flagrante: olha lá dona petruska, a carola que trabalha na farmácia da esquina, xeretando a pichação.
a velha sacou um esparadrapo da bolsa e tascou a letra “a” sobre os “os” do flanelinha e a frase ficou: “todas juntas”.
gentchy, será que dona petruska é feminista?
tá tudo gravado, por via das dúvidas….
e você pensa que acabou aí?
pois olhe quem vem ali, camisa aberta, bermuda até o joelho, uma barba rala no rosto….
se não é o meu ex-colega de classe, conhecido atualmente como rei arthur.
antes, preciso te dizer essa: na quinta série – como esquecer? – esse que agora é chamado de rei e de arthur, havia sido eleito a rainha da primavera, levando a escola à loucura.
nessa época ele ainda era uma garota.
liguei a câmera: arthur olhou pra a pichação, coçou a barba, meditabundo e sacou um spray do bolso…
pausa para uma explicação: sim, aqui no bairro todo mundo carrega um spray: seo calango, por exemplo, que é árbitro de futebol amador, tem sempre um spray de espuma na cintura; carrapato, que é pm, num larga seu spray de pimenta nem quando não está de serviço; dona ritinha é pra lá e pra cá com um spray de laquê, modelando a cabeleira acaju… o resto é tudo pichador ocasional.
voltemos ao rei arthur. você já deve imaginar o que ele fez; porém, se te falta imaginação, eu ajudo: arthur grafou dois “x” enormes e em vermelho por cima dos “as” de dona petruska, que já cobriam os “ós” do jaburu e a frase ficou: “todxs juntxs.
não tenho dúvida de que chomsky, que é o pai da teoria da gramática universal, acharia que essa construção perfeitamente gramatical.
no dia seguinte, e no outro, nenhuma outra intervenção, só gente tirando selfies.
editei as imagens e levei o filme para mostrar pro padre pedro e ver o que ele tem a dizer.
o da batina, que gosta de punk rock e toca ramones no ukulele, viu o filmete, achou interessante o bairro usar o muro para se comunicar e até para discutir, mas não entendia direito esse lance de usar o x como marca neutra de gênero.
“que fuleiragem é essa?”, ele perguntou.
“uma letra”, eu disse a ele, “pode mudar muita coisa, pedroca”.
lembrei ao vigário que até deus já havia usado esse artifício.
foi mais ou menos isso que eu expliquei ao pároco, se bem me lembro:
quando deus firmou um acordo com abrão e sarai, ele fez questão de alterar a grafia dos nomes destes nômades.
um virou abraão e, a outra, sara.
o cabra ganhou uma vogal, a mulher perdeu uma. só o diabo sabe o motivo dessa enigmática equação.
o uso da letra “x”, como marca genérica de gênero, tem incomodado algumas pessoas, sobretudo aquelas que nada sabem sobre morfologia, sociolinguística, semântica ou pragmática da língua.
ou seja, quase todxs.
na ordem do discurso (e aqui já tô metendo análise do discurso na parada, porque é ela quem nos alerta para o fato de que a linguagem é usada como instrumento legitimador de poder e ideologia), usar a letra “x” como marca neutra de gênero é uma atitude de rebeldia, transgressão e liberdade.
porque essa letra x contesta um uso até então incontestado; porém, nunca, incontestável.
sabemos que usos e costumes, em qualquer cultura, obedecem à dinâmica dos tempos, que na teoria da linguagem chamamos de diacronia.
e como as culturas evoluem, tudo está sujeito a revisões.
como a língua e a linguagem – e aqui já vou atacando de saussure, curso de linguística geral – não estão dissociadas da cultura, elas também se modificam.
a gramática mesma vive a revisar-se, as inúmeras reformas ortográficas que nos digam.
cadê o trema que tava aqui?
só não sofrem alterações ao longo do tempo as línguas mortas, porque cadáveres não falam.
até aqui o padre ia concordando com tudo. segui:
portanto, usar o “x” como (des)marcação de gênero é, esse é o ponto, uma atitude empoderadora para não machos.
e é isso que aquele x do arthur está querendo dizer, quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça.
entenda, porque o da batina já compreendeu tudo: por séculos, a marca genérica de gênero no masculino, é um imperativo categórico.
e porque sempre esteve lá parece natural e correto, mas a linguagem é uma construção humana, por isso devemos pensar como quando vemos um jabuti sobre uma árvore: se lá está é porque alguém colocou.
quem e por quê?
a filosofia da linguagem, de platão a wittgenstein, versa sobre isso.
no crátilo, platão, o ghost writer de sócrates, nos ensina algo elementar: a conexão entre as palavras e o mundo é arbitrária, é fruto de convenções e consensos.
era disso que saussure falava quando mostrava a relação entre significantes e significados.
você sabe que a palavra cadeira só define o objeto que conhecemos como cadeira por uma mera convenção; os falantes da língua inglesa chamam esse mesmo objeto de chair, e tudo bem.
o lance é que a língua e a linguagem, não apenas nomeiam coisas, objetos, ideias…
elas dão forma ao pensamento, elas formatam nossa cognição.
franz boas, o cabra que pariu a antropologia nos esteites, fazendo análise comparativa entre línguas, sacou que até o léxico pode interferir na formatação do pensamento.
olha aí.
o sapiente sapir, discípulo de boas (não que ele fosse um cara de boas, boas era o mestre dele) percebeu que língua e cultura são indissociáveis, que a realidade é moldada pela língua que falamos e que a linguagem mexe tanto com o pensamento quanto com o comportamento (e nenhum behaviorista há de contestá-lo).
não é que a linguagem seja determinante, mas ela influencia a forma de sermos e estarmos no mundo: essa é uma das premissas da famosa hipótese sapir-whorf; whorf era o bróder do sapir.
o grande vigostski também associava pensamento e linguagem, é pela linguagem que construímos os pensamentos.
pois bem, estamos habituados a falar “O Homem” para se referir a toda a humanidade (mankind, em inglês).
você acha isso legal?
com aquele picho, arthur deixou claro que não acha.
deus é pai, dizem os deístas. amém, responde a igreja.
curioso, porque, pelo que eu saiba, deus não tem piroca, e jamais se apresentou para alguém na figura de um camarada.
mesmo assim, as pessoas aceitam essa machificação da divindade. deus é pai.
assim, acostumamos a masculinizar o poder.
e a machificação vai se sobrepondo a tudo.
a língua reflete e reforça isso.
se temos nove meninos e uma menina numa sala de aula, dizemos que na sala de aula há dez alunos.
no entanto, se tivermos, nessa mesma sala de aula, nove meninas e um menino, dizemos, igualmente, que há dez alunos.
só diremos dez alunas se lá não tiver nem meio menino.
ora, ora, ora.
pense em platão, nos teóricos da análise do discurso, na língua como construção humana e mantenedora de ideologia e reflita:
essa determinação imperativa do masculino faz parte de uma cosmovisão masculinizada: lembra-te que a trindade é pai, filho e espírito santo.
até o pombo é macho!
a marca do “x” que arthur deixou gravada na parede como indeterminação de gênero me parece, portanto, revolucionária.
arthur criou um novo sintagma cheio de sentido, pois procura, com esse gesto, desmachificar a língua.
e, de lambuja, tenta desmachificar nossa forma de enxergar o mundo e de nos enxergarmos neste mundo.
sacou agora o lance da cosmovisão, da visão de mundo?
e o mais bacana disso tudo, é que arthur não tá sugerindo que se troque “o” masculino pelo “a” feminino, como quem mede forças.
ele procura anulá-los, des-hierarquizando-os.
Isso, sim, é legal!
em espanhol, além do “x”, do “*” e do “@”, usam-se também o “e” como marca neutra de gênero: ao invés de dizer nosotros e nosotras, todos e todas, sugere-se dizer: “nosotres” ou “todes”.
porém, a real academia española – veja que nome metido e cafona – que mantém num cofre as chaves das algemas da gramática normativa da língua de cervantes, rechaça o uso da linguagem inclusiva.
a tal real academia, agindo como uns meganhas da língua, manda dizer que “mudanças linguísticas, a nível gramatical, não se produzem, nunca, por decisão ou imposição de nenhum coletivo de falantes”.
lembra daquela parada da língua como instrumento de poder? olha ela aí.
você acha que essa tal real academia não é um coletivo de falantes?
porém, não se trata de qualquer coletivo de falantes: poder e ideologia na veia.
percebe que aquele spray na mão do nosso bom arthur está a dar uma bafônica bofetada nesses bufões?
e, cara, é bom que você saiba, grande parte das línguas existentes nesse mundo nem fazem uso de gênero.
o coreano, por exemplo, nem artigo tem para definir gênero!
voltemos ao “x” como marca neutra de gênero, há um problema aí, não posso deixar de dizê-lo.
a coisa só é possível graficamente.
o “x” heterogenérico – bem como arroba e asterisco -, espremido entre duas consoantes, como em “todxs”, perde sua função fonética, fazendo com que esse grafema não possa existir como um fonema, porque é impronunciável.
portanto, um texto escrito dessa forma só pode ser lido de forma silenciosa.
ora, mas numa sociedade não ágrafa, a língua não é só fala.
nas sociedades letradas, a língua escrita é que é definidora de poder, é ela que ratifica documentos, livros e afins.
então, uma simples pichação em um muro com um “x” no lugar (con)sagrado da desinência masculina já produz uma clara insubordinação à gramática normativa, tem óbvia função pragmática e semântica e se configura como uma liberdade linguística e uma forte e desafiadora atitude política.
portanto, esse é o xis da questão.
o padre, depois de ouvir tudo papando umas hóstias, falou: “olha, rapaz, acho que esse arthur é quem tá certo.”
ainda não estou certo de quão certo está o arthur, preciso ouvir um cego.
palavra da salvação.
* Formado pela Universidade de Brasília, Lelê Teles é jornalista, roteirista e publicitário. É roteirista do programa Estação Periferia (TV Brasil) e da série De Quebrada em Quebrada (Prodav 09). Sua novela, Lagoas, foi premiada na Primeira Bienal de Cultura da UNE. Discípulo do Mestre Cafuna, prega o cafunismo, que é um lenitivo para a midiotia e cura para os midiotas.