Marcos Cardoso
Os políticos, como todo grupo social, falam um dialeto próprio, às vezes técnico, às vezes jocoso, às vezes até ininteligível, para tentar nomear com mais afinidade as suas atividades. O ex-presidente José Sarney (1985-1989) popularizou uma expressão, “liturgia do cargo”, para definir o ritual da função que lhe caiu ao colo com a morte de Tancredo Neves, o presidente que nunca governou.
Como bom católico, ele pinçou da Igreja o termo que resume as práticas do culto religioso aplicando-o à função em serviço público. Desde então, muitos têm falado sobre a liturgia do cargo, mas se alguns nem sabem o que isso significa, outros a atropelam solenemente.
Pelo modo descontraído de falar e agir, quando presidente, Lula foi frequentemente censurado por supostamente ferir a liturgia do cargo. E o que dizer do atual ocupante do palácio, Jair Bolsonaro?
Ele começa a desrespeitar a função por ser um assumido nepotista. “Se puder dar um filé mignon ao meu filho, eu dou”, lembram? Nepotismo, aliás, é uma palavra também de origem religiosa, pois significava os favores de que desfrutavam os sobrinhos do papa e, por extensão, a autoridade exercida pelos sobrinhos ou demais parentes do papa na administração eclesiástica. Nepote é a palavra latina para sobrinho.
Bolsonaro solapa a liturgia do cargo quando se expressa como se estivesse em conversa de botequim, onde não é exigido que se apresentem verdades científicas a todo momento. “Quando se fala em poluição ambiental, é só você fazer cocô dia sim, dia não que melhora bastante a nossa vida também, está certo?” Ou: “Você olha que as pessoas que têm mais cultura têm menos filhos. Eu sou uma exceção à regra, tenho cinco, tá certo?”
Tá certo.
Se Bolsonaro é deselegante até com seus mais importantes ministros — chamou Sérgio Moro de ingênuo e Paulo Guedes de xucro, segundo ele, por serem inexperientes na política —, não se poderia esperar um tratamento litúrgico com relação aos jornalistas.
Sobre Míriam Leitão: “Ela estava indo para a guerrilha do Araguaia quando foi presa em Vitória. E depois Míriam conta um drama todo, mentiroso, que teria sido torturada, sofreu abuso etc. Mentira. Mentira”.
Mas a jornalista nunca teve participação na luta armada. Quando foi presa, em 1972, aos 19 anos, era estudante universitária e filiada ao PCdoB, estava grávida e nem assim foi poupada da tortura por três meses.
Sobre Glenn Greenwald: “Malandro, malandro, para evitar um problema desse (deportação de estrangeiros considerados perigosos), casa com outro malandro e adota criança no Brasil”.
Com relação aos índios, o ódio é explícito. A revista IstoÉ denunciou que estaria em andamento no Brasil um dos mais graves atentados humanitários da história das Américas desde no início de sua colonização. “O agressor tem nome, sobrenome, apelido, patente militar e cargo de mandatário: Jair Messias Bolsonaro, o ‘Mito’. A vítima é a população indígena, composta hoje por aproximadamente 900 mil pessoas distribuídas em 305 etnias que falam 274 idiomas”.
E assim ele (des)trata a Procuradoria Geral da República, que considera a dama (não seria a rainha?) do seu jogo de xadrez, no qual ele é o rei; as ONGs, que foram acusadas de incendiar a Amazônia; o programa Mais Médicos, que teria objetivo de formar núcleos de guerrilha; e até os que no Brasil passam fome, o que para ele seria uma grande mentira.
Nas relações exteriores, Bolsonaro comete um erro diplomático vulgar ao zombar das nações com as quais o Brasil mantém laços históricos. Zomba da beleza de Brigitte Macron: quando um seguidor publicou fotos dela e de Michelle Bolsonaro, afirmando que o primeiro-ministro francês sentiria inveja, ele endossou: “Não humilha cara. Kkkkkkk”.
Mas seu déficit civilizatório atinge o grau de perversidade quando zomba da dor de uma filha, zomba do povo do Chile e até das Nações Unidas ao justificar a tortura e o assassinato do pai da ex-presidente e alta comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet: “Diz ainda que o Brasil perde espaço democrático, mas se esquece que seu país só não é uma Cuba graças aos que tiveram a coragem de dar um basta à esquerda em 1973, entre esses comunistas o seu pai, brigadeiro à época”.
Já tinha feito semelhante comentário desagradável quando atacou o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz: “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade”.
O advogado protocolou ação no STF em que pleiteia a notificação de Bolsonaro para que esclareça as declarações feitas sobre a morte de seu pai, Fernando Santa Cruz, desaparecido durante a ditadura militar.
Exaltar ditadores e torturadores tem sido mais do que uma mania, é uma obsessão do hoje presidente. E isso extrapola as lições de boas maneiras.
Acusando-o de desrespeitar os direitos humanos e também de fortalecer e intensificar um processo de genocídio das etnias indígenas no país, juristas do Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHu) e a Comissão Arns o denunciaram ao Tribunal Penal Internacional, em Haia, Holanda.
“O presidente Bolsonaro caminha a passos largos para ocupar seu lugar na história ao lado das figuras mais deletérias que já governaram países”. A afirmação é da advogada Juliana Vieira dos Santos, que participa da denúncia, ao explicar a petição que pede a investigação.
A zombaria pode render uma condenação na Corte que julga os delitos mais graves cometidos por indivíduos, como genocídio e crime contra a humanidade. E isso não tem a menor graça.