Por Antônio Samarone *
Jesus percorria a Galileia. “Lhe traziam os que eram acometidos de doenças diversas e atormentados por enfermidades, bem como os endemoninhados, lunáticos e paralíticos.” Mat. 4:23-5.
A loucura é anterior ao Homo sapiens. Foram encontrados sinais, no homem de Neandertal. A medicina também é anterior ao Sapiens. Fósseis com o fêmur remendado, são sinais de cuidados com os ferimentos dos outros.
Nenhum animal resiste a uma perna quebrada. Ele morre! Ou por não conseguir chegar a uma fonte de água, ou por tornar-se presa fácil para os predadores.
A psicopatologia existe desde que os hominídeos desenvolveram o lobo frontal do cérebro, a fonte dos sofrimentos. O medo da morte é antigo.
Voltando aos loucos.
O Código Civil brasileiro de 1916, em seu artigo 5º, definia como incapazes, entre outros, “os loucos de todo o gênero”.
Quem eram os esses loucos? Os doidos, malucos, lunáticos, insanos, lelés, lesos, aluados, idiotas, ruins da bola, maníacos, dementes, tresloucados, psicopatas, psicóticos, destrambelhados, pinel, birutas, alienados, retardados, abilolados ou maníacos. A denominação era diversa.
As sociedades agrícolas simpatizavam com os seus doidos. A minha mãe tinha uma profunda compaixão por eles: “Não existem doidos no inferno, todos se salvam”, dizia ela. Eu enxergava nisso um grande atrativo: ser livre do fogo eterno.
Sempre gostei dos doidos!
As sociedades rurais conviviam com os seus doidos, mesmo sem trabalhar, improdutivos. Desde que eles não ameacem a segurança.
Todas as comunidades possuíam os seus insanos. Zé Doidinho, em Itabaiana, era estimado por todos.
O capitalismo nunca precisou dos improdutivos. A incapacidade para o trabalho era inaceitável, passível de punição. A vadiagem era crime. A saída foi trancafiá-los em grandes manicômios.
A sociedade pôs moderna precisa dos neuróticos, mas teme os psicóticos.
Quem são hoje esses loucos, na pós-modernidade, para a psiquiatria? As doenças mentais não possuem materialidade. São doenças definidas pela palavra.
De forma genérica, temos três grupos:
Os psicóticos que deliram e alucinam. Doentes graves. Os remédios reduzem as alucinações e os delírios, contudo, não ajudam na ressocialização. Esses pacientes causam medo a sociedade.
A esquizofrenia, quando acompanhada da pobreza, causa grande sofrimento. É num problema social.
“Alucinações e delírios são vivencias distorcidas, que envolvem todas as funções psíquicas – percepção, representação, juízo crítico, volição, afetividade e memória. Nada fica de fora.” – Ali Ramadam.
O fanatismo e o delírio são irmãos. O negacionista acredita, sem reservas, em um sistema de ideias, ancorado apenas em sua cosmovisão. Não admitem contestação. O fanático é obcecado por suas ideias. O delirante é um fanático em seu modo de pensar.
Existe um segundo grupo: os grandes deprimidos. Tolerados, desde que continuem produtivos. A sociedade os vê com grande desconfiança. Muitas vezes subestimam o seu sofrimento. Desconfiam. Suspeitam de simulação.
Os remédios são muitas vezes eficazes contra os sintomas. Os fármacos, além dos efeitos colaterais, causam dependência. Nesse grupo, é elevada a prevalência dos burnouts e dos suicidas.
E um terceiro grupo, o mais numeroso, dos que padecem de sofrimento mental leve. Angústia, sofrimento existencial. Precisam de ajuda para levarem a vida.
São pessoas atormentadas, que não toleram o sofrimento. Enxergam a felicidade como um direito, mesmo quando a natureza nunca os tenha prometido.
O mal-estar, estudado por Freud, foi medicalizado. Uma saída química, prevista por ele.
A Sociedade do Cansaço, no dizer de Chul-Han, criou uma legião de atormentados, que a psiquiatria ateórica americana chama de transtornos. Criaram mais de mil categorias diagnósticas, numa fragmentação absurda, bem ocupada pela indústria farmacêutica.
Os fármacos são da mesma família dos venenos e dos tóxicos.
As drogas psiquiátricas são eficazes na redução ou eliminação passageira da ansiedade e do mal-estar. Com um detalhe, os fármacos também são eficazes em pessoas sem queixas de sofrimento mental.
Os normais se tornam mais normais, com o doping. Mais competitivos, com o raciocínio mais rápido e com a memória estendida.
Os novos medicamentos psiquiátricos reduziram os efeitos colaterais e a dependência. Podem ser usados, sem que os usuários demonstrem qualquer alteração visível.
Em breve, os editais dos concursos vão exigir teste anti-doping.
* É médico sanitarista e está secretário de Cultura de Itabaiana.