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Memórias traumáticas: golpes, ditaduras e suas implicações para a sociedade brasileira

José Vieira da Cruz

Por José Vieira da Cruz *

Memórias traumáticas costumam, como espectro, rondar as sociedades contemporâneas. A exemplo da sistêmica segregação étnico-racial protagonizada pelos Estados Unidos no curso dos séculos XIX e XX; do Apartheid étnico-racial vivenciado na África do Sul na segunda metade do século XX (1948-1994); dos horrores produzidos pelo Holocausto na Europa durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945); e da repressão política impostas por ditaduras Latino-americanas no século XX – dentre as quais a ocorrida no Brasil (1964-1985).

Entre nós, a ditadura civil-militar tem início com o golpe imposto em 31 de março de 1964, ponto de partida, por vezes, associado a atos do mês de abril. A referida inflexão política interrompeu uma experiência democrática nacional-desenvolvimentista, reformista e populista (1945-1964) – transcorrida após a ditadura do Estado Novo (1937-1945). O novo período autoritário foi resultado de uma ação das forças militares com apoio de setores da direita, empresários e religiosos conservadores. A natureza do golpe tem sido objeto de um denso debate quanto ao seu viés “revolucionário”, “contra-revolucionário” ou de “golpe de estado”. A respeito, a compreensão mais consolidada é a de que se trata de um golpe civil-militar. O mesmo consenso não ocorre quanto à natureza da ditadura cujo debate quanto a seu caráter “civil-militar” ou “militar” não está definido.

Independente desta controvérsia, a ditadura civil-militar brasileira, entendimento que assumimos, foi protagonizada, ao longo de 21 anos, por oficiais militares e contou com o apoio de setores conservadores da sociedade civil, muitos dos quais, posteriormente, sentiram os reverses contra seus interesses. Afinal, em contextos golpistas, ditatoriais e antidemocráticos ninguém está imune aos abusos autoritários – nem os apoiadores de ocasião tão pouco, como expressa o poema de Mário Jorge, nem os convictos apaixonados pelas “ilusões transitórias” das “botas que esmagam”.

Em termos incisivos, os golpistas e os apoiadores da ditadura civil-militar, descaracterizaram a carta constitucional liberal de 1946 – em razão da necessidade de manter o manto da aparente legalidade. Pretensão forjada através da outorga, sob forma de decretos, de atos constitucionais – assinados por generais das forças armadas que ocupavam a presidência na condição de interventores. Imbuídos do objetivo de consolidar e conferir legalidade as ações da ditadura foram publicados: o AI-1 em 1964, suspendendo direitos políticos, cassando mandatos e intervindo em instituições públicas; o AI-2 de 1965, extinguindo partidos políticos e criando o bipartidarismo com a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido da situação, e o Movimento Democrático Brasileiro(MDB),  partido da oposição; o AI-3 de 1966, instituindo eleições indiretas para governadores estaduais; o AI-4  de 1967,  formalizando o regime militar outorgando a “Constituição de 1967”; e o AI-5  de 1968, suspendendo habeas corpus, fechando o Congresso Nacional e concedendo poderes absolutos ao Presidente da República.

Amparados por estes atos, ações e um conjunto controverso de leis, os golpistas impuseram uma severa repressão – através de prisões ilegais, desaparecimentos, torturas e assassinatos, além da censura a liberdade de expressão e cerceamento de manifestações sindicais, sociais e políticas –aos opositores, críticos ou delatados não alinhados ao novo ordenamento jurídico estabelecido pela força das armas e apoiado pela moral conservadora.

Os traumas, máculas e cicatrizes deixados pelo referido período de arbítrio, imposições e coerção são sentidas até hoje. A exemplo do legado de violências praticadas impunimente por agentes do estado contra a sociedade; da contradita, distorcida e casual interpretação quanto ao poder político de moderação conferida aos militares pelo artigo 142 da atual Constituição; das indefinições quanto a escolha de reitores e outras autoridades por meio de eleições indiretas, com sufrágio eleitoral restrito e através de indicação de lista tríplice; nos entraves para efetivação de uma política de reforma agrária assentada em uma definição do uso da terra socialmente referenciada: entre outras.

Em Sergipe, a chamada “Operação Cajueiro”, ocorrida em fevereiro de 1976, em pleno Carnaval, é um dos casos desta repressão. Ela foi organizada pelo Exército para perseguir suspeitos de estarem atuando como militantes, apoiadores e simpatizantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Utilizando-se de tortura para coleta de informações, os agentes desta operação prenderam mais de vinte pessoas em Aracaju, dentre elas, o petroleiro Milton Coelho, tornado cego pelos atos de violências sofridas.  Relembrar episódios como os da mencionada operação e da tortura deferida contra o citado ativista, permite refletir para que não nos esqueçamos, bem como, para que nunca mais ocorram períodos autoritários, antidemocráticos e ditatoriais.

Ilustram também este quadro de violência política, vulnerabilidade e sujeição de cidadãos –  independente da condição social ou classe –, aos abusos do Estado:  a expulsão dos alunos do Atheneu por recusa em participar de atos cívicos em apoio ao Golpe, a submissão de ativistas e gestores de movimentos de educação e cultura popular a Inquéritos Policiais Militares (IPMs) por trabalharem o método de alfabetização de Paulo Freire; bem como, a prisão de estudantes, sindicalistas, religiosos, intelectuais, políticos e, até mesmo, autoridades do judiciário  – sem o devido processo legal, ampla defesa e contraditório.

A Igreja Católica em Sergipe, dividida desde a eclosão do golpe, demonstrou leniência e até apoio aos golpistas. Em contraste, com a posição do arcebispo Dom José Vicente Távora, religioso próximo a Dom Helder Câmara, que viu o movimento como um retrocesso político e, ele mesmo, foi cerceado de suas atribuições eclesiásticas em benefício de religiosos que apoiaram a ditadura. O caso do jornal “A Defesa”, semanário da Diocese de Propriá, é emblemático, pois após o golpe enalteceu ações e figuras autoritárias, mas na década seguinte tornou-se uma das vozes de oposição à ditadura na região do Baixo do rio São Francisco.

No cenário que antecede o golpe, o movimento estudantil secundarista e universitário estavam em evidência pelo engajamento nas pautas reformistas, nacionalistas e populares, defendendo a criação de uma universidade no estado, alfabetização de adultos e defesa da extração das riquezas minerais do subsolo do estado. Após o golpe, incluídos na alça de mira da repressão política, eles sofreram com prisões de suas lideranças e militantes, bem como, tiveram de lutar para que suas entidades não perdessem autonomia e fossem fechadas.  A respeito, as imposições draconianas da Lei Suplicy (Lei nº 4.464/1964) e do Decreto Aragão (Decreto-Lei nº 228/1967), impuseram o fechamento, redenominação, extinção e confisco de bens que pertenciam às entidades estudantis – dentre elas a União Estadual dos Estudantes de Sergipe (UEES) foi expropriada da posse de um terreno localizado nas proximidades do bairro São José.

Mesmo sob os auspícios desta repressão, os estudantes resistiram e se organizaram – através de experiências de greves, júris simulados, panfletagem, pichações, jornais alternativos, atividades culturais e participações em congressos, encontros, seminários e debates. Uma destas participações, ocorrida no Congresso da UNE em Ibiúna no ano de 1968, resultou na prisão, processos de expulsão e cassação de direitos políticos de estudantes da então recém-criada Fundação Universidade Federal de Sergipe.

A ditadura ceceou a liberdade de expressão e de livre manifestação das artes e do pensamento crítico – independente se nacionalista, liberal, cristão, humanista ou de esquerda. Atestam esta constatação, os dossiês produzidos pelos órgãos da comunidade de segurança e de informações deferidos contra estudantes, trabalhadores, intelectuais, artistas, políticos e sindicalistas do campo e da cidade. Estes documentos retratam a exacerbação do binômio “amigo” ou “inimigo”. A respeito, lideranças políticas, como os governadores Miguel Arraes, de Pernambuco, e João Seixas Dória, de Sergipe, tiveram seus mandatos cassados e foram presos ou exilados. Assim, a “lógica da suspeição” e a ideia do “inimigo interno” permeou o imaginário dos golpistas e apoiadores da ditadura em razão de ideias associadas à Doutrina de Segurança Nacional, a uma suposta ameaça comunista e de interesses pessoais, ocasionais e diversos.

Lógica, percepção e imaginário associáveis, com as devidas ressalvas históricas, ao atual contexto de polarizações, desconfianças e bolhas de opinião alimentadas pela extrema direita. Em torno destas bolhas, há pouco ou nenhum espaço para críticas, mediações e ponderações. Nelas, os sujeitos são amigos, aliados e partidários ou são inimigos, adversários e rivais, e, portanto, sob esta lógica irracional, devem ser cancelados, bloqueados, cerceados, lacrados, eliminados ou, em situações extremas, até assassinados.

As marcas do golpe e da ditadura, assim como outros traumas contemporâneos, persistem na sociedade, nas redes sociais e junto às instituições políticas.

Em torno destas cicatrizes, assistimos, ainda que com lamento, o avanço internacional da extrema direita a partir de evocações distorcidas do passado, compreensões deturpadas do presente e horizontes de expectativas de segregação de indivíduos e grupos sociais excluídos, marginalizados, invisibilizados ou dispersos nas periferias: trabalhadores, migrantes, negros, povos originários, pessoas com orientação sexual diferente e outros grupos vulneráveis.

Em meio a este cenário, a aprovação por uma das turmas do Supremo Tribunal Federal, pelo placar de 5X0, tornando réus os implicados com a tentativa fracassada de Golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023, é um gol em meio a um campeonato desfavorável à democracia. Desta forma, a valorização tanto de políticas públicas quanto de estudos sobre memórias, narrativas e acontecimentos contrários a golpes, ditaduras e movimentos antidemocráticos é fundamental para fazer frente a proliferação de informações distorcidas, parciais e negacionistas disseminadas por diferentes plataformas digitais e redes sociais.

Em suma, o golpe e a ditadura não são evento e processos históricos isolados, mas sim, cicatrizes traumáticas indissociáveis que precisam ser combatidas, esclarecidas e ressignificadas. Desta forma, quatro décadas após o fim da ditadura (1985-2025), a democracia ainda é vista como um horizonte de expectativa a ser consolidada, defendida e mais bem conhecida. Este é um caminho para combater as reminiscências do autoritarismo que ainda persistem em nossa sociedade.

Sabemos que convivemos com estes e outros traumas, mas temos ciência – parafraseando filme em homenagem a família Paiva – que “ainda estamos aqui”. E, como disse a fala da esposa do governador João de Seixas Dória, deposto pelo golpe civil-militar de 1964 – registrada no documentário “Uma lutadora intimorata” – temos que ter “alternativa”.

* É historiador, professor da Universidade Federal de Sergipe e membro do IHGSE.

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