Por Cicero Cunha Bezerra*
Aracaju recebeu, em sessão única no Cine Vitória, no último dia 27 de fevereiro, o documentário sobre um dos personagens mais importantes da história da Capoeira: mestre Paulo dos Anjos. “Dessa arte eu sei um pouco” tem a direção de Cled Pereira e bem que poderia se intitular três histórias de uma história. Estreado em 14 de novembro de 2024, no CineMan da Bahia, o documentário vem circulando por cidades brasileira e apresenta, ao longo dos seus 80 minutos, três histórias de vidas a partir dos depoimentos de três mestres formados por Paulo dos Anjos: Jaime de Mar Grande, Jorge Satélite e Renê Bittencourt.
Fruto do incentivo da Lei Paulo Gustavo, o documentário chama atenção por seu roteiro memorialístico, sem, no entanto, para decepção de alguns expectadores, se configurar como uma “cinebiografia” específica do mestre Paulo dos Anjos. O que temos são histórias de “meninos”, hoje homens, que cresceram em meio às dificuldades sociais e que encontraram, na figura de um “mestre”, apoio e formação educacional que lhes permitiram tornar seus desejos de crianças em ações e projetos que, ainda hoje, permanecem mantendo os vínculos iniciais que nutriram os primeiros passos para as suas formações, não apenas de capoeiristas, mas de cidadãos, como destaca um dos mestres em seu depoimento no Documentário.
No livro A Capoeira em Salvador: registro de mestres e instituições, que tem como organizadores Alex Pochat, Franciane Simplício e Nágila Diacuí (Rio de Janeiro: MC&G, 2015), encontramos o registro de cinco grupos atuantes, em Salvador, vinculados diretamente à linhagem do mestre Paulo dos Anjos, são eles: ACANNE – Associação de Capoeira Angola Navio Negreiro, Mestre Renê – Renê Bitencourt dos Santos, Associação Cultural de Capoeira, Clips Academia Mestre Jorge Satélite – Jorge Sátiro da Conceição, Associação Cultural de Capoeira Grupo Anjos de Angola Academia Mestre Amâncio – Amâncio de Souza Lopes e Grupo Cultural Movimento de Corpo Mestre Tucano – Anderson Rocha.
Obviamente, este dado é limitado à cidade de Salvador e não expressa a presença real do mestre Paulo dos Anjos nos diversos grupos espalhados no Brasil e pelo mundo. De todos os modos, é significativo que nas descrições dessas quatro Associações e um Grupo cultural, encontremos, em todas, o compromisso para com o mantimento dos valores originários do mestre Paulo dos Anjos.
Nascido em 15 de agosto de 1936, na cidade de Estância (Sergipe), se transferiu para Salvador em 1941 onde conheceu, em 1959, mestre Canjiquinha com quem permanecerá, formando-se em 1957. Há registros de que deu aula na Academia do mestre Gato Preto, no Engenho Velho da Federação nos anos sessenta[1]. Porém, o momento decisivo, para o desenvolvimento do Documentário que estamos aqui comentando, aconteceu em 1965 quando Paulo dos Anjos chegou em Mar Grande, na Ilha de Itaparica, e conheceu o então menino de nove anos Jaime Lima. É nesse acontecimento, segundo o Documentário, que o fio de Ariadne se desenrola tomando triplos caminhos, mas sempre atado ao seu ponto de partida: o mestre.
A então paixão dos “meninos” pela Capoeira configura-se, no documentário, como uma poética de vidas que resistem ao aniquilamento seja pelas condições básicas da existência, como a fome, à falta de acesso aos bens, como um simples calçado, até à violência que busca extinguir corpos negros em movimento. Tudo misturado com humor e lembranças de um ser humano possuidor de uma personalidade típica dos grandes mestres, guardiões de uma sabedoria que não se aprende em livros ou manuais, mas que transforma indivíduos comprometidos com o trabalho de difusão, não apenas da memória, mas de práticas reflexivas e transformadoras.
O documentário também toca, com muita precaução, em algumas questões não tão consensuais no que diz respeito às discussões sobre o papel e as relações entre a Capoeira Angola e suas práticas. Os mestres expõem suas opiniões, inclusive em relação às percepções tidas por eles do próprio mestre Paulo dos Anjos, de modos diversos em que temos alguns pequenos curtos-circuitos que, em alguns aspectos, convergem, mas, em outros, separam perspectivas e olhares. Questões raciais, tema delicado no ambiente angoleiro ainda hoje, ou de gênero, nenhum testemunho feminino entre os protagonistas, são suavizados pela alegria de belas rodas com forte presença de mulheres e por paisagens marítimas e urbanas da cidade de Salvador. A fotografia é um dos aspectos interessantes do documentário.
É verdade que a vida do mestre Paulo dos Anjos, como muitos outros mestres, ainda está para ser pesquisada e escrita de forma mais profunda e consistente do ponto de vista documental. Embora possamos encontrar alguns materiais disponíveis na Internet, principalmente entrevistas com o próprio mestre na plataforma Youtube[2], seria fundamental um levantamento em acervos de mestres e alunos que conviveram com Paulo do Anjos e guardam registros e memórias desse que teve o reconhecimento de educador por seus alunos e, graças aos esforços dos moradores do Bairro da Paz (antigo Malvinas)[3], tem o seu nome atribuído ao Colégio Estadual Mestre Paulo dos Anjos, primeira instituição fundada nesse bairro para atender ao Ensino Fundamental II e Médio.
Cumpre ressaltar que essa homenagem não é fortuita ou por acaso. Segundo o trabalho de Taila Jesus da Silva Oliveira e Cleide Falcão de Carvalho, intitulado Colégio Estadual Mestre Paulo dos Anjos, apresentado no I Seminário Internacional 200 anos de Escolas Públicas no Brasil[4], a escolha do nome foi deliberada como valorização à sua dedicação e defesa da capoeira como prática cultural. É interessante observar que o Colégio vem, desde 05 junho de 2005, acolhendo e transformando jovens de diversas faixas etárias e, principalmente, com caraterísticas de vulnerabilidade. Afirmam as autoras: “São alunos de distintas etariedades, mulheres, homens, jovens e/ou adolescentes, majoritariamente negros que, por fatores como: dificuldades financeiras, gravidez na adolescência, violência doméstica, homofobia, lesbofobia, racismo religioso, vulnerabilidade social e/ou conflitos com a lei ainda resistem e se encontram nas salas de aulas, com o manifesto desejo de dar continuidade à educação escolar”[5].
Dono de uma voz particular, mestre Paulo dos Anjos gravou um dos mais emblemáticos CD de capoeira: Mestre Paulo dos Anjos: Capoeira da Bahia (1990). Neste CD, temos eternizada sua ladainha preferida Cartão postal da autoria de Mestre Gato Preto, segundo depoimento do próprio mestre Paulo dos Anjos[6]. Essa ladainha é uma verdadeira viagem na qual as imagens de Salvador se misturam com preceitos tradicionais de domínio público da capoeiragem no bom estilo dos que “têm boa compreensão”[7]. Por certo, uma das insistências do mestre Paulo dos Anjos, em praticamente todas as suas falas, no CD e entrevistas, repetida por seus discípulos no documentário, diz respeito a uma certa postura estético-ética necessária para definir um(a) capoeirista: “não criar problema, não ser problemático, que capoeira não é nada do que o povo fala por aí, é beleza”.
Beleza que exige conhecimento, diz ele “o saber supera a estupidez”[8] se referindo aos antigos “valentões” que venciam pela violência os que nada sabiam, impondo-se pela pura força física. Como não perceber a contemporaneidade dessas suas palavras? Sua defesa, sempre contundente, de uma prática da capoeira baseada no conhecimento, perspicácia e mandingagem é exemplo de um mestre que não parecia valorizar mitos ou fabulações extraordinárias no jogo. Em algumas entrevistas suas, o mestre desmistifica narrativas como a de capoeiristas jogando com navalha no pé: “tinha, mas era no bolso do capoeirista. Para botar no pé e sair cortando, é mentira” [9].
Mestre Paulo dos Anjos morreu em 26 de março de 1999 vítima de uma infecção hospitalar por ocasião de uma intervenção cirúrgica, no entanto, sua força permanece como um dos baluartes da capoeira que propagou a necessidade, sempre, da atenção e respeito para com o outro. O documentário “Dessa arte eu sei um pouco” é um convite para que sigamos as trilhas de três grandes figuras ancoradas na força propulsora de quem fez da capoeira um ato de respeito. Viva mestre Paulo dos Anjos, camaradinho!
*Professor Titular do Departamento de Filosofia – UFS
[1] Em entrevista disponível em: https://esquiva.wordpress.com/mestres/mestre-paulo-dos-anjos/
[2]Como exemplos: Capoeira: curso com mestre Paulo dos Anjos( https://www.youtube.com/watch?v=mMyvGhL4SXI), Mestre Paulo dos Anjos: a Voz da Experiência (https://www.youtube.com/watch?v=9dzc9MOMols ), Entrevista inédita de Mestre Paulo dos Anjos (https://www.youtube.com/watch?v=_wv9lhxbEwE ).
[3] Mestre Paulo dos Anjos, após regressar das suas viagens para o Estado São Paulo onde viveu nos anos setenta, entre São José dos Campos e São Paulo, regressa, em 1980, para Bairro da Paz em Salvador onde tinha sua academia desde 1975.
[4] Anais publicado em: https://portaldobicentenario.org.br/i-seminario-internacional-200-anos-de-escolas-publicas-no-brasil/
[5] BAHIA. Projeto Político Pedagógico, Colégio Estadual Mestre Paulo dos Anjos. SEC: Salvador, 2017.
[6] Conforme entrevista disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9dzc9MOMols
[7] Mestre Paulo dos Anjos em A voz da experiência https://www.youtube.com/watch?v=9dzc9MOMols
[8] Entrevista inédita de mestre Paulo dos Anjos em: https://www.youtube.com/watch?v=_wv9lhxbEwE
[9] Em https://esquiva.wordpress.com/mestres/mestre-paulo-dos-anjos/