Por Antonio Samarone *
A psiquiatria de mercado tirou as neuroses da agenda clínica. Fragmentou e apequenou o sofrimento mental em uma infinidade de “transtornos” adaptados aos recursos da indústria farmacêutica. Tirou do sofrimento humano a sua transcendência filosófica, reduzindo-o a sua condição de sintoma corporal.
A neurose abarca a condição humana em sua globalidade. um problema histórico e de caráter. A sua essência é infenso à abordagem clínica. Os transtornos são sintomas sem significados, reduzidos a alterações químicas.
O neurótico é um rebelde que rompeu com a autoilusão da condição humana. O neurótico se aproxima da verdade e como com esta não se pode conviver, são necessárias as ilusões. Nessa contradição reside o sofrimento dos neuróticos.
O neurótico é um indivíduo que tem dificuldade de manter o equilíbrio entre a ilusão de sua cultura e a realidade de sua natureza. O neurótico perde a ilusão sobre si mesmo. “Tudo é vaidade”, conforme o Eclesiastes.
Conheço um erudito, amante da boa música, advogado de boa formação, crítico do poder judiciário que vive recluso. Um neurótico autoproclamado. Quando ele frequentava os amigos era um terror: não se continha em dizer as verdades inconvenientes de cada um. Fazia dos exageros um recurso para dizer coisas inaceitáveis e parecer que estava brincando.
Outro, é um teórico stalinista, amante da boa vida e das divagações filosóficas, vive à espera da inspiração final, para publicar a sua obra prima. Cada um carregando a sua cruz existencial, para esquecer a morte que se aproxima de todos nós.
“Se o homem será tanto mais normal, saudável e feliz quanto mais ele conseguir reprimir, deslocar, negar, racionalizar, dramatizar a si mesmo e enganar os outros, chega-se à conclusão de que o sofrimento dos neuróticos provém da dolorosa verdade”. – Otto Rank.
Eu tenho meia dúzias de amigos que são neuróticos de carteirinhas. Todos inteligentes e bem formados. As neuroses poupam a burrice.
Precisamos de uma loucura do cotidiano para nos proteger da loucura de hospício.
A realidade da vida é um problema esmagador. O homem normal só absorve o que ele pode mastigar, ele parcializa, mantém a mente ocupada com os pequenos afazeres. Eles se tranquilizam com o trivial. O homem imediato é um filisteu.
A essência da normalidade é a recusa da realidade, viver na mentira e na ilusão. É preciso mentir, sobretudo para si mesmo. O neurótico volta-se à si mesmo, faz da realidade uma parte do seu Ego, o que explica o seu sofrimento.
A natureza não tem compromisso com a felicidade, o que ela nos ofereceu foi o corpo, objeto da evolução biológica, destinado a envelhecer, adoecer e morrer.
Quando o nosso Eu simbólico abandonou a esfera do sagrado, nos deixou expostos a nós mesmos, sujeitos a uma autoglorificação fantasiosa.
A neurose só se instala em quem está buscando a verdade da existência, paga-se um alto por essa busca e os caminhos são individualizados. As neuroses são históricas, cada época com as suas.
Pinel relata que o Salpêtriére, hospital psiquiátrico francês, ficou vazio durante a Revolução Francesa. Todos os neuróticos encontraram um drama pronto para a sua identificação heroica.
Os neuróticos da pós-modernidade não precisam da clínica, nem da autoajuda. Eles abominam a normalidade. Esses amigos que acompanho, buscam um sentido para a vida, que talvez não exista.
O abandono da esfera transcendental deixou o homem desprotegido, sem explicação para muita coisa. Só o sagrado oferece uma ilusão para a morte. A religião abre a dimensão do desconhecido,
O poder analítico da razão afasta os mistérios, as crenças ingênuas e as esperanças simplória. Ao homem desiludido só resta as neuroses. A única verdade que resta ao homem é a que ele cria e dramatiza.
* É médico sanitarista