Por Eduardo Marcelo Silva Rocha *
Às vezes as coisas quando feitas sem muito compromisso formal e pretensão conseguem atingir objetivos tão complexos quanto inesperados. Mais uma vez, nesse carnaval como em todos, diversos segmentos da sociedade, notadamente do Estado e representantes, abraçaram as campanhas de proteção aos Direitos Humanos de grupos chamados minoritários.
Foi recorrente, e louvável, as mensagens repassadas por autoridades, políticos, forças de saúde e de segurança pública sobre a importância de respeitar a incolumidade de pessoas que ainda sofrem violências devido às questões da diversidade de gênero, bem como dos assédios que em regra atingem as mulheres. Seja através de canais oficiais tradicionais ou das redes sociais, muitos “deram a cara” para trazer a importância do respeito ao outro, independente de qualquer pauta de costumes. Podemos destacar as postagens da Polícia Militar, da Polícia Civil, enquanto instituições, bem como a da Delegada Katarina, que o fez em seu Instagram.
Mas o gol de placa foi feito pela Guarda Municipal de Aracaju!
Salvo engano, no dia 16 corrente, antes do início oficial dos festejos carnavalescos, a GMA divulgou em suas redes um clipe musical no qual os guardiões interpretavam a canção “Maria Sapatão”, famosa marchinha carnavalesca de Jose Roberto Kelly, gravada em 1980, por Chacrinha.
Detalhe que, no clipe, os guardiões encontram-se vestidos com o uniforme “grosso” ou de “instrução”, o utilizado na execução do serviço mais pesado, ainda paramentado pelos acessórios táticos, como o colete balístico.
Eis a ruptura.
Por um lado a marchinha hoje integra um rol de canções carnavalescas “canceladas”, devido aos seus conteúdos preconceituosos, num país em que o preconceito resulta quase que invariavelmente em violências das mais diversas, além da física. O que terminou por suscitar, após a publicação da mesma, algumas críticas de setores ligados às tais pautas.
Por outro, vieram críticas de profissionais de segurança, que entendem ser absurdo um agente de segurança fardado, aparecer em algo menos informal e descontraído, como em um clipe musical, cantando e dançado músicas carnavalescas.
Costumo concordar com a regra de que para acertarmos, muitas vezes, precisamos ser mais leves e não nos levarmos demais a sério – o que não significa, nem de longe, ser irresponsável. Também, através das sacadas de Nelson Rodrigues, observo que quando algo desagrada os dois lados que se opõem em suas pautas certamente merece maior atenção, pois deve estar no caminho certo.
Ah, a unanimidade…
Confesso que ao assistir o vídeo tomei um choque inicial – ninguém está isento das amarras – pelo inusitado e inesperado: uma guarnição (preparada pra guerra!) cantando dançando, precisei aquecer a cuca pra enxergar o algo mais, mas logo percebi a profundidade imagética, independente das escolhas artísticas.
Ora, era uma mulher cantando uma música “cancelada”, fardada, nada mais disruptivo. Só que – e exatamente por isso – não tinha como aquela peça não chamar a atenção e ser vista por muitas pessoas, conseguindo assim levar a mensagem final da importância de se respeitar o outro, em sua diversidade.
Para “piorar” (algo que só descobri dias depois) a guardiã Valéria, que canta e dança, é lésbica e que o intuito do vídeo, conforme descrito na postagem, foi “ressignificar, dar um novo sentido, sentido diferente a palavras usadas de forma pejorativa nessa antiga marchinha de carnaval”. Perfeito.
O vídeo, ao final, somou milhões de visualizações e foi objeto de matérias e reportagens em sites de alcance nacional, como o Metrópoles, dentre outros.
Com olhos de hoje, vejo tal ação de forma despretensiosa, comparando a um jogo de futebol, como o fez Mateus Gonçalves na última terça, ajustando um pouquinho a marcação, conseguiu um desarme, para avançar e, superando o adversário, finalizar com um golaço!
Parabéns à Guarda!
* É tenente coronel da PM/SE e membro da Academia Brasileira de Letras e Artes do cangaço (eduardomarcelosilvarocha@yahoo.com.br)