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O Cachorro quente de Seu João

* Por Amaral Cavalcante

Tanto se investigou, muito se discutiu, mas ninguém nunca constatou o que fez do Cachorro Quente de Seu João o preferido da cidade. Metade de um pão Jacó recheado com carne frita picadinha, batatinha pra fazer volume e uma profusão de alface. Nem salsicha tinha! Mas lá pras seis da tarde, o que parava de carrão com encomenda de oito, pra levar, confirmava: era o jantar das madames.

Vendia como bênção no portal do inferno. Em volta do panelão fumegante na hora do rango, juntava todo tipo de gente. No oitão da catedral, em frente ao Colégio Jackson de Figueiredo, num quiosque malajambrado, mendigos, advogados, desabonados da sorte e cidadãos de mais ilibada moral (desconjuro!) compareciam, viciados no lanche barato – o Cachorro Quente de Seu João. Comê-lo, requeria contorcionismos de bailarino e habilidade na mordedura, senão, o conteúdo esguinchava na roupa, melava o sapato, engordurava a gravata!

(Seu João (E) em sua movimentada barraca de Cachorro Quente)

A cidade não tinha melhor o que fazer. Dali podia-se paquerar colegiais das melhores famílias, doidas para controverter a bitola moral de dona Judite – matriarca de gerações dondocas no Colégio Jackson. De vez em quando ela concedia à sua preservada prole desfilar em procissão do Colégio até o sacratíssimo sacrário na Catedral, em ordem unida, por graças alcançadas. Festa! As meninas facilitavam cinco centímetros a mais na barra da saia para deleite geral e remissão dos nossos pecados.

A praça se enchia de promessas eróticas, os consumidores do Cachorro Quente de Seu João achavam namoradas e o amor de Deus estava servido. As mais afoitas, fugidas da procissão escolar, se permitiam até uma mordidinha no bico do pão com promessas de afagos. Mas Seu João, de colher de pau em punho, não aprovava isso: “Ô moleque, vai futucar o xibiu da mãe!”

Era um velho nos velhos moldes, Seu João. Cara fechada, resmunguento, negão de altura colossal e chapéu panamá, manoplas ágeis no corte certeiro do pão e no delicado trabalho de enchimento: quanto menos carne melhor, a alface enfeitava. E fiado, nem pro Bispo!

Mas ninguém parra imune à convivência com a malandragem, nem Deus. E assim mesmo, só quando Ele desvia o tunco, prestando atenção pros lados. O território de Seu João também era o nosso, o da malandrona Turma do Parque Teófilo Dantas, esturricada de fome e, sempre, desabonada de grana.

Pois foi num descuido desses – Seu João olhou pros lados – que Cabo Tripa, capitão da molecagem no Parque, deu um devo nele. Que feito extraordinário! Se disse funcionário municipal prestes a receber abono de muita grana e lhe ofereceu dois por um pela comemoração antecipada. Pagaria depois em dobro, quando rico estivesse. Seu João acreditou, caiu na esparrela.

A ordem foi comer até estufar.

Pois bem, não lhes conto mais nada, assim, de boca cheia!

Só que no outro dia, diarréia. E nunca mais ninguém de nós botou as caras por lá, temendo a justiceira colher de pau de Seu João no cocuruto.

*Poeta e cronista de mão cheia, Amaral Cavalcante morreu em julho de 2020.

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