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O enigma da canjica

Professor Francisco José Alves *

A canjica, no parecer abalizado do mestre Luís da Câmara Cascudo (Dicionário do Folclore Brasileiro. 9 ed. São Paulo: Global, 2000), é “prato tradicional, indispensável e típico nas festas de São João”. De fato, é muito difícil discordar do eminente potiguar. É uma heresia culinária conceber as festas juninas nordestinas sem a presença da deliciosa iguaria. A receita é muito simples: milho verde ralado, açúcar, manteiga, leite de coco. Como condimento, o cravo e a canela.

Os poucos ingredientes combinam-se e resultam numa tentação para qualquer asceta à mesa. A iguaria pode ser comida quente ou fria, sendo que o mais comum é seu consumo gelada. Mas como a canjica se fez presente na culinária brasileira? Veio da África, da Europa ou é coisa made in Brasil? Que história esconde o maravilhoso manjar?

A título de nota, consideremos o que dizem os “peritos” da área, os etimólogos, que investigam as origens, as metamorfoses dos vocábulos ao longo do tempo. Vale dizer, logo de início, que a origem do termo canjica é questão controversa. Não há consenso entre os especialistas sobre o tópico. Revisemos o parecer dos especialistas.

O sociólogo Gilberto Freyre (Casa grande e senzala. 48. ed. São Paulo: Global, 2003), foi um dos primeiros a se debruçar sobre a origem da canjica. Conforme ele, a canjica é prato de procedência nativa. Enquadrar-se-ia na lista das contribuições culinárias dos índios ao cardápio nacional. A canjica, ao lado da moqueca, da paçoca, do mingau, do beiju, da carne moqueada, seria uma deliciosa herança dos Tupinambá, índios brasileiros que habitavam o litoral, quando da chegada dos europeus nos começos do século 16. O estudioso recifense concebe a canjica como sendo derivada do termo tupi “acanjic”. Infelizmente, Freyre não indica a fonte da sua explicação etimológica.

A favor da tese do autor, temos o fato de que o milho, matéria-prima principal da canjica, é cereal de comprovada origem sul americana. Todavia, contra a tese de Gilberto Freyre, se levanta o depoimento taxativo de uma testemunha colonial: Frei Vicente do Salvador (História do Brasil. 6. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1979). Em 1627, o religioso, tratando da relação dos índios com o coco, recém introduzido na terra, diz que os silvícolas “só os comem e bebem a água (…) sem os mais proveitos que tiram [do coco] na Índia”.

Contrapondo-se à explicação dada por Gilberto Freyre, temos a opinião de estudiosos da língua portuguesa. Para estes peritos, o termo canjica não é indígena, veio importado da África junto com os escravos. Para Nei Lopes (Novo Dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2003), o termo que batiza o nosso prato junino tem origem no quicongo, língua falada no Congo e Angola. O dicionarista vê no termo canjica uma metamorfose de “Kanzika”, papa grossa de milho cozido.

Mário Eduardo Viaro (Por trás das palavras: Manual de Etimologia do Português. São Paulo: Globo, 2004), professor de Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo, é outra autoridade a defender a procedência africana do termo canjica. Viaro, como Nei Lopes, acredita que o nome chegou até nós por meio dos escravos africanos. O autor deriva o termo português canjica das línguas bantas quimbundo e umbundo, faladas, sobretudo, em Angola. Conforme Viaro, canjica advém de “Kanjica”, nas línguas mencionadas significa papa. No entender do especialista, o quimbundo e o umbundo “são as mais representativas [das línguas africanas] nas etimologias do português”.

Antes de Nei Lopes e de Eduardo Viaro, um outro perito brasileiro já havia atribuído origens africanas ao vocábulo canjica. Aludo ao etimologista Antenor Nascentes (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1937). O famoso estudioso viu na canjica brasileira uma herança procedente da África. No parecer do ensaísta, canjica é vocábulo oriundo do quimbundo “língua da família banta falada em Angola pelos ambundos”. Canjica, diz o autor, vem do quimbundo, “Kandjica”.

O filólogo Antonio Geraldo da Cunha (Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986) também tentou decifrar o enigma etimológico da canjica. Cunha se distancia tanto da hipótese ameríndia quanto da africana. O perito entende que canjica vem de uma outra palavra portuguesa. Para ele, a origem de canjica é o termo canja. O termo viria de Kanji, termo da língua malaiala falada na região de Malabar, sudoeste da Índia e que significa “arroz com água”. Assim, conforme os estudioso, o nome de batismo da canjica tem origem asiática.

Que o leitor não estranhe a suposta origem oriental da canjica. Pois foi intensa a presença portuguesa na Índia, particularmente em Goa, a partir do século 16. Lembra-nos Eduardo Viaro que os “portugueses tiveram contato direto com vários povos da Ásia”. O mesmo estudioso afirma que o malalaia enquadra-se dentre as línguas indianas com as quais os portugueses mais tiveram contato, ao lado do concani e do tâmil. Se Cunha tiver correto, a brasileiríssima canjica é prato híbrido, cujo nome procede do distante oriente. Assim, o insosso arroz foi substituído pelo milho, e o leite de coco tomou o lugar da água.

Favorecendo a hipótese de Cunha, temos que considerar as intensas relações comerciais entre Índia e Portugal entre 1497 e 1860. A chamada “carreira da Índia”, o roteiro marítimo, incluía o porto da Bahia. Por meio dele, muitos produtos orientais, particularmente indianos, foram trazidos ao Brasil, ao longo dos séculos 16, 17, 18 e 19. É o caso do cravo e da canela, dois condimentos da celebrada canjica.

Vê-se, pois, que o delicioso manjar junino, a canjica, pode ter se originado em três distintos pontos da geografia: Brasil; Angola/Congo e Índia (Goa). Aos peritos da etimologia, fica a tarefa de dirimir qual das três hipóteses é a mais acertada, ou apresentar uma outra mais condizente com a documentação. Eu, mero curioso nesta seara fascinante, fico a aguardar, ansioso, que eles esclareçam o enigma etimológico da canjica.

 * Doutor em História Social, mestre em Antropologia e professor do Departamento de História/UFS. E-mail: fjalves@infonet.com.br.

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