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O papa-terra

Por Antonio Samarone *

Severino, aos onze anos, andava pelos cantos comendo barro. A molecada não perdoava: Ensogado, amarelo igual a rã de faveira, empapuçado, inchadinho.

Na escola do professor Orion, todos se achavam no direito de zomba-lo.

Ele sempre que podia levava na brincadeira. Sorridente, atencioso, educado, mas quando se zangava, saísse de baixo. Eu gostava dele.

Reconheço que de vez em quando eu também tirava onda. Em terra de sapos, de cócoras com eles.

Ainda não existia o bullying, ou se existia, ninguém sabia. Na verdade, não existia a consciência do bullying. As relações sociais em minha Aldeia eram mediadas pela violência.

Severino não era um coitadinho, andava com um canivete amolado e não pestanejava. Tinha a língua afiada. De vez em quando, reagia as zombarias com firmeza. Contra-atacava.

Severino professava uma filosofia: “atrás dos apedrejados, correm as pedras.” Portanto, ele tentava fazer de conta que não era com ele. Até certo ponto.

Lembro-me de Severino brincando de “pinta rainha” e “sola mingola”, escutando as estórias de Trancoso contadas por dona Gemelice, a rezadeira.

Se não bastasse, o pai de Severino, seu Júlio, era um homem rigoroso. Achava que o vício dele era intolerável. Não é fome, só pode ser safadeza. A desculpa do papa-terra é o pau não ter oco. Os castigos eram medonhos. O vicio conduz ao precipício, pensava seu Júlio.

Entretanto, uma força estranha empurrava Severino para a geofagia. A vigilância não impedia. Ele passou a comer terra escondido.

Só na Faculdade, descobri que Severino padecia do amarelão, uma verminose causada pelos nematelmintos ancylóstoma ou necator. O organismo de Severino precisava de ferro. Ele não tinha saída.

Severino comeu um tampado de terra, más sobreviveu ao amarelão e a crueldade dos amigos.

Era o ambiente cultural de minha infância. A compaixão era reprimida.

* É médico sanitarista

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