Por Afonso Nascimento *
O último regime autoritário (1964-1985) tratou os estudantes universitários, de seu início ao seu fim, como um problema e estes viram os militares do mesmo jeito, já que eles representavam a ausência de democracia. Por isso, fizeram-lhes oposição até conseguirem até a sua retirada da política. Os militares se serviram da repressão e de leis autoritárias para impedir as mobilizações e as lutas estudantis. Os campi universitários eram percebidos como viveiros de “subversivos”. Isso é até irônico, pois foram esses homens fardados e armados quem subverteram a ordem política democrática, colocando, no seu lugar, um regime de força. Porém, as ações dos militares não se limitaram apenas ao uso da repressão. Eles experimentaram outros meios para conseguir o apoio dos estudantes universitários.
O primeiro esforço de ganhar legitimidade junto à comunidade universitária brasileira veio com a criação de disciplina chamada Estudos de Problemas Brasileiros (EPB), com qual os militares pretendiam inculcar nos estudantes os valores autoritários sobre a sociedade e a política considerados como aqueles que deveriam ser seguidos. Era uma cultura cívica muito atrasada e contrária aos valores democráticos. Essa disciplina foi imposta a todas as grades curriculares das ciências humanas e das ciências da natureza. Para que o conteúdo dessa disciplina fosse passado aos estudantes, os militares criaram uma categoria paralela de professores universitários temporários, de segunda classe, que não faziam parte de nenhum curso e eram selecionados fora dos concursos públicos ordinários.
É possível que essa disciplina tenha obtido sucesso junto a certos de estudantes, todavia, grosso modo, os estudantes com alguma compreensão política não lhe deram nnenhuma importância, tomando-a como créditos obrigatórios que tinham que cursar. Os professores de EPB eram e ficaram marcados como intelectuais a serviço do regime militar. Durante ou após o tempo em que essa disciplina foi lecionada, muitos desses tais professores migraram para os departamentos que lhes eram mais próximos, com ou sem concursos públicos ordinários.
Os militares em busca de legitimidade entre os estudantes universitários foram um pouco adiante e criaram o maior programa de extensão universitária de toda a América Latina! Foi o chamado Projeto Rondon, que durou de 67 a 89. Antes de entrar nos detalhes desse programa de extensão, deixe-me dizer uma palavrinha sobre quem foi Rondon. Ele foi um militar do Exército, que tinha origem indígena, tornado conhecido sobretudo pelo seu trabalho de “sertanista” que se embrenhou nas selvas da Amazônia em busca de contato com nações indígenas brasileiras. Criado muito tempo da morte do marechal Rondon, esse projeto tinha como lema “Integrar para não entregar”,mnuma clara alusão à Amazônia brasileira.
O Projeto Rondon envolvia vários ministérios do regime militar (Ministério do Interior, Ministério da Educação, etc.) e tinha como público-alvo os estudantes universitários das universidades federais do país. Partia da concepção – correta, aliás – de que cada estudante universitário, não importando o seu curso, podia pôr em prática as suas habilidades curriculares à disposição de comunidades carentes esquecidas nos sertões desse país continental. Aprendizes de médicos, dentistas, advogados, educadores, entre tantas outras formações universitárias, poderiam contribuir para melhorar as condições de vidas dos brasileiros pobres em todas as regiões, e com especial atenção para os estados e os territórios da Amazônia dos anos 70. Assim, estudantes universitários do Nordeste, do Sudeste, do Sul, do Oeste e do Norte foram enviados para regiões diferentes das suas, como também estagiaram em seus próprios estados e universidades. Como existia um sistema federal de universidades, estas serviam como base de apoio antes de rumarem para as cidades e os povoados a que tinha sido destinados. O problema desse projeto de extensão é que ele transformava os estudantes, com consciência destes ou não, em propagandistas de um regime autoritário, antidemocrático e antipopular.
Esse programa de extensão universitária seguia um pouco o programa criado nos Estados Unidos conhecido até hoje como “Corpo da Paz”, com a diferença de que os estudantes americanos são enviados a países estrangeiros onde os EUA têm interesses ou que são fontes de instabilidade social e política. Dizendo de outra forma, no caso americano, o seu programa seguia e segue a lógica e os interesses estratégicos do *imperialismo americano na América Latina e no resto do mundo. Os franceses também tinham (ou têm) algo parecido voltado para as ex-colônias e para os departamentos de ultramar. Quanto ao Brasil, os estudantes iam trabalhar ou estagiar (lembrando os estagiários da ESG e da ADESG nos estados) em comunidades carentes, para conhecer a realidade social de perto, a serviço do regime militar. Geralmente, os estudantes que participavam de tal programa voltavam entusiasmados com o trabalho realizado, com as viagens a partes desconhecidas do Brasil, com o conhecimento de outros universitários de outras regiões, com a aquisição de novas amizades. Todavia, nem sempre os relatos eram positivos.
Eu conheci uma estudante da área de Educação que, na primeira metade dos 70, foi enviada ao interior do Rio Grande do Sul, onde ela estagiou junto a uma comunidade de descendentes de alemães. Pelo que ela me contou, o pai de uma aluna sua veio até a escola, puxou a filha pelo braço e disse filha sua não iria estudante com uma professora preta! Não quero imaginar o mal-estar causado no seu ambiente escolar e a dor sentida por essa estudante sergipana. Também tive a chance de conhecer uma estudante catarinense que, despachada para os sertões da Bahia, ficou horrorizada com as condições de miserabilidade encontradas na comunidade onde estagiou.
A respeito dos estudantes de Direito da UFS, sei que o ex-deputado estadual Antônio Passos tomou parte no Projeto Rondon, contudo não posso informar a cidade onde foi estagiar. Ouvi o relato de dois outros universitários sergipanos. O primeiro foi o de Luciano Oliveira, hoje professor aposentado da UFPE, que participou do Projeto Rondon em Aracaju. Prestou trabalho de assistência jurídica a presidiários em situação ilegal em Aracaju. No seu estágio, era a própria direção da Penitenciária do bairro América que selecionava os casos. Sua experiência durou entre um e dois meses e ele ajudou a soltar meia-dúzia de presos requerendo habeas corpus para eles. Já Nilton Vieira Lima, advogado ainda hoje militante, participou do Projeto Rondon em Sergipe (nas cidades de Boquim, Propriá, Japaratuba e Pirambu) e no estado do Amazonas (na cidade de Coari), em ambas experiências lidando com trabalhadores rurais. Tinha como meta prestar serviços jurídicos a sindicatos de trabalhadores rurais.
Não posso informar quais eram as motivações dos universitários que levavam a sua participação no Projeto Rondon. Isso é trabalho para uma pesquisa. Certamente no meio de tais estudantes, enquanto estagiários, havia apoiadores do regime militar. Mas tendo a pensar que a maior parte deles parecia mais interessada no estágio profissionalizante e no desejo de conhecer partes desconhecidas do país. Não dá paradizer, portanto, que somente eram estudantes de direita ou que eram parte do movimento estudantil dos militares. Entretanto, não ficarei surpreendido se souber que, nos processos seletivos, os escolhidos tenham passado pelo crivo das Assessorias de Segurança e Informação das universidades federais, como era costume à época.
Fico à vontade para afirmar, por outro lado, que a esquerda estudantil rejeitou inicialmente o referido programa de extensão e que, mais tarde, percebeu que esse projeto de extensão poderia ser usado para alargar a sua militância política e a sua luta contra o regime militar. Não foi por acaso que órgãos de segurança e informação farão alerta sobre o que eles chamaram de “infiltração subversiva” no Projeto Rondon. Devo acrescentar para concluir esse pequeno texto, que o Projeto Rondon funcionou concomitantemente com as ações repressivas do regime militar contra os estudantes brasileiros. Em outras palavras, com o Projeto Rondon, os militares competiam com as organizações estudantis de esquerda pelo controle dos corações e das mentes dos estudantes universitários.
* É professor de Direito da Universidade Federal de Sergipe