Por Lelê Teles *
Solstício de inverno.
Do céu, gotejam levíssimos flocos de neve, encanecendo a copa dos pinheiros; um esquilo, esquálido, rouba uma noz da natureza e emburaca-se numa frincha de árvore, sorrateiro.
No dia mais curto do ano, o sol se encolhe e se esconde como se fosse a piroquinha de uma criança em manhãs muito frias.
Nessa mesmíssima data, os barbas ruivas da Europa do norte celebram, desde tempos remotos, seguindo uma tradição pagã, os dias vindouros que serão mais longos naquelas gélidas paragens.
Mas essa não era uma manhã como todas as nórdicas manhãs manhosas e friorentas.
Em algum lugar, alguém acendeu uma lareira para manter o coração aquecido.
Como se enxergasse e interpretasse o sinal de fumaça, lá na Lapônia, Papai Noel, triplamente vacinado, deu um suspiro de alegria, beijou um envelope de cartas, de olhos fechados, calçou as luvas, ajeitou o gorro, checou a mecânica do trenó, botou o saco no porta-sacos, meteu a cangalha nas renas e zarpou, veloz, em uma intrigante euforia.
Ho, ho, ho… cantava o bom velhinho, sob um céu colorido pela aurora boreal.
Lépidos e fagueiros, os veadinhos voavam, deixando atrás de si um rastro cintilante.
Na Noruega, depois de um longo dia de trabalho por toda a Escandinávia, Noel tirou a farda, assobiando.
Meteu um baraço na carruagem sem rodas e a amarrou num pinheiro, encheu um cocho com feno para alimentar os galhadinhos, passou uma loção na barba e borrifou perfume amadeirado no cangote, ajeitando a gola da camisa de flanela.
“Esperem um pouquinho que o vovô já volta”.
Rudolph, veado livre e vagalúmico, acendeu o narizinho vermelho e piscou para o patrão que, bochechas enrubescidas, sacou que o amiguinho havia sacado.
Findo o expediente e vestido à paisana, Noel dirigiu-se à casa de um homem de meia idade que havia lhe escrito umas cartas cheias de paixão e encharcadas de lágrimas quentes.
Noel chegou de surpresa ao endereço do infeliz solitário e, como se tivesse saído de dentro de um saco vermelho era, ele próprio, Noel, o presente com o qual o cabra esperava ser presenteado.
Duas taças rubras os aguardavam; brindaram, brincaram, trocaram olhares e mudas insinuações.
Até que uma flecha invisível atravessou seus corpos, desencadeando processos químicos que provocavam euforia, sudorese e um prazeroso estado de inebriamento felicitivo.
Deram-se as mãos e dançaram, crianças felizes, um gangar, uma polca, uma valsa e um slaater.
Amor à primeira vista, os dois se congelaram, frente a frente, saco com saco, e se deram um longo, quente e prazeroso beijo.
Ah, quem diria que aquele velho rechonchudo, encanecido, chamuscado e cansado de entrar e sair de lareiras, um dia encontraria o amor de sua vida…
Finalmente ele encontrou um pé que cabia naquela meia que deixam nas janelas.
Um romantismo capaz de fazer suspirar qualquer velhinha viúva e de lubrificar as mais assanhadas tias solteironas.
Indiferentes ao frio que faz lá fora, corpos em brasa, o casal segue o ritual do pré-acasalamento, frenéticos tateares, línguas nervosas, trocas de salivas…
A câmera lhes permite a privacidade, se afasta, saindo pela janela, trenóicamente.
Entra a assinatura de uma empresa de serviços postais que, com esse filme, celebrava meio século de efetiva liberdade afetiva naquele país, onde o velho Santa pode beijar quem ele bem entender.
Por muito tempo, confesso, fiz mau juízo de Noel, julguei que esse velhote fosse um pedófilo embusteiro; nunca engoli aquele lance de ficar botando crianças sentadas em seu colo.
E pensava assim porque sei que, geralmente, o bom velhinho nem é bom e nem é velhinho.
No Brasil, por baixo daquela fantasia de Papai Noel de shopping, geralmente tem um PM fazendo bico, um desempregado desesperado ou um ex-empreendedor uberizado que faliu por conta do aumento dos combustíveis.
Como disse o sábio Augustinho Carrara, se eu sou meu próprio patrão, eu também sou meu empregado, sendo assim, posso demitir-me quando a coisa apertar, fica bom pros dois.
Como se vê, são muitas as razões que levam um homem empobrecido a papainoar.
A sacanagem pode ser uma delas.
Note que esses noéis de shopping raramente são velhinhos, a barriga é postiça, a barba é postiça, o saco fica nas costas…
Uma fraude, em suma.
Há também quem considere que o Papai Noel é, em verdade, um papa anjo, porque as Mamães Noéis são sempre jovens e sempre surgem metidas em vestidos curtos, com as canelas de fora, as botas longas, como se fossem uma daquelas funkeiras que não sentem frio.
Mas esse é o Papai Noel brazuca.
O Noel que o noruego encontrou era um autêntico lapão; barbudo, velho e gordo, mesmo sem a farda.
E o comercial é bom porque também fala sobre afeto e carinho entre pessoas idosas.
O diabo é que a coisa não caiu bem em terras tupiniquins, temem, os fiscais do saco alheio, que Noel, além de encantar crianças ingênuas e senhoras assanhadas, agora revelado homoerótico, possa se converter em um fetiche para os homens de meia idade.
Vovôs, temem os temerosos, passarão a levar seus netinhos para o shopping numa ardilosa armação para flertar com o sacudo.
Rui Costa Pimenta e Aldo Rebelo também não enxergaram nenhuma poesia na cena. Não confundam renas com veados, ensinou Pimenta.
Acreditam, Rebelo e Pimenta, que o Papai Noel gay dos noruegos é um cavalo de troia.
Para eles, os serviços postais noruegueses usam essa peça de propaganda para entreter e alienar a juventude que, uma vez imbuída em defender o inusitado casal, esquece-se da luta de classes, embarcando nas malditas causas identitárias.
O povo deve seguir um único barbudo, Marx, parece dizer a dupla cringe.
O Governo Federal (do Brasil!), também se manifestou.
O secretário de fomento à cultura, senhor André Porciuncula, ameaçou:
“Estou verificando cada veículo de mídia que divulgou a cena do São Nicolau (Papai Noel). O santo é parte integrante da fé cristã, e, até onde eu sei, desrespeitar a fé alheia ainda é crime. Farei uma notícia-crime contra os envolvidos”, afirmou.
Ainda de acordo com o secretário, a mídia tem que respeitar a fé cristã.
O bu(r)rocrata só não soube dizer o que o Santa Clauss tem a ver com a fé cristã.
Imagina você, um santo tomando Coca-Cola, ao lado de um urso polar, fazendo propaganda de preservativos, lanchas, energéticos e vaporizadores.
“Pare de fumar fumando; ho ho ho”, e dá uma baforada no vape.
Santa nunca foi santo, é um personagem criado por um artista estadunidense que o vendeu à Coca-Cola.
Nada tem a ver com o arcebispo turco de nome Nicolau.
Tanto é que o velho Santa não frequenta igrejas, só é visto em shoppings e em festinhas de crianças ricas, “presenteia os ricos e cospe nos pobres”, como disseram os Garotos Podres.
Sim, é preciso focar as atenções na fome, no desemprego, nas barcaças que inundam o Rio Madeira de bandidos inescrupulosos que estão dispostos a tudo para poderem escarafuncharem o leito do rio, em busca de ouro.
No entanto, paralelo a isso, é preciso também tratar de outras fomes, igualmente urgentes, como o genocídio dos jovens negros, o feminicídio, o ecocído e o etnocídio, a brutalidade contra travestis e transexuais…
Quando se afirma que as causas identitárias são estruturais, está se contestando a estrutura; o sistema, portanto.
Elementar, diria o Sherlock.
Hoje mesmo, quando aqueles piscantes caminhões da Coca-Cola passarem na minha rua, com Noel, renas e um urso polar gigante tomando um refri, eu mandarei um beijo ao Santa, seguido de uma maliciosa piscadela.
De agora em diante, o saco do Papai Noel virou, ele mesmo, um presente.
Palavra da salvação.
* É jornalista, publicitário e roteirista.