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O Silêncio da Paixão

Por Clara Angélica Porto *

Cresci numa família com mãe muito católica, e pai agnóstico. Mamãe foi criada por uma madrinha dedicada à igreja, fundadora da Ordem Terceira de Sergipe, cuja vida foi dedicada à igreja e aos pobres. Mamãe era parte dessa história como uma menina criada para ser freira. Muito danada e esperta, ao lado de Maria Olívia e Cecinha Fontes, aprontavam na colina do Santo Antônio. Sempre podiam confessar e comungar para expiação dos pequenos pecados.

Um dia, papai a conheceu na agência dos Correios, na esquina da rua Laranjeiras com Itabaianinha. Colecionador de selos e viúvo, estava sempre por lá e chamou-lhe a atenção a moça linda e magrinha que vendia selos. Disseram-lhe que ela gostava da assinatura dele e tinha vontade de conhecê-lo. Pronto, bastou, e já estava no balcão para apresentar-se à moça, que se revelou tímida.

No mesmo dia, ela ia passando pelo Ponto Chic, ponto de encontro de homens intelectuais e de negócios. Tennyson Aragão apressou-se em elogiar a moça, preparando-se para dirigir-lhe a palavra. Papai foi mais rápido, logo a abordava, perguntando-lhe se a podia acompanhar. Com um sorriso tímido assentiu. Levou-a no bonde até o Santo Antônio, onde ela morava no alto da colina. Lá, falou com a madrinha, e pediu permissão para namorar mamãe e acompanhá-la à casa todos os dias.

Garantiu-se.

Depois, foi a paixão do homem viúvo, aos 42 anos, oriundo de tradicional família, pela jovem e bela órfã, aos 20 anos. Não sem antes ter acontecido o romântico episódio do jasmineiro que se emaranhava no muro e portão da casa da colina.

Ele, experimentado e sedutor, armou um pequeno plano para roubar-lhe beijos. Começou elogiando o jasmineiro, o perfume que se começava a sentir ainda da pracinha, e, apontando para cima, comentou como podia haver pequenas cobras que ali se escondiam. Ela, assustada, olhou para cima com a mão no coração. Ele beijou-lhe o pescoço, e, gentilmente foi subindo até os lábios. Um primeiro beijo digno de cinema, com emoções de vida real. Pronto, dali em diante, o caminho dos beijos estava aberto. Um ano depois, se casaram, ali mesmo na Igreja do Santo Antônio, celebrado por Frei Edgar, grande amigo da familia. Um intelectual agnóstico e uma católica fervorosa.

Papai respeitava todos os rituais católicos, frequentava a Missa do Galo e missas de sétimo dia. Mamãe era devota de Santo Antônio, fazia todas as novenas e trezenas, rezava o terço todos os dias e tinha fé inabalável.

Mas era na Semana Santa que papai se revelava um fiel seguidor. Àquela época, a Sexta Feira Santa era guardada em silêncio. O corpo do Senhor morto envolto em panos roxos tinha filas imensas na catedral, as mulheres com as cabeças cobertas por véus, os homens em ternos elegantes. Eu sempre chorava com pena de Jesus, tão bom, e beijava em lágrimas a face dele. Acompanhava as lágrimas de mamãe. A Via Sacra, ela acompanhava com dedicação, eu sempre ao lado dela.

Mas onde entra o prazer de papai nessa história? Todas as emissoras de rádio, ainda não havia televisão, tocavam somente música erudita, o que ele amava. Ficava ao lado do rádio, escutando e identificando. Quando o locutor dizia ao final o compositor, ele já havia acertado. Conhecia tudo. Gostava do silêncio da sexta feira da Paixão, quando todos respeitavam o silêncio. Não havia brincadeiras de roda, estátua ou bom barqueiro nas calçadas, nem peladas dos meninos. Podíamos somente brincar em silêncio. Eu brincava muito de Pinto galo, e era campeã em botar todas as pedrinhas por baixo do arco de dedos cruzados.

Na mesa, era o dia do bom bacalhau, que papai fazia questão de comprar pessoalmente. Com um vinho tinto, de preferência, português ou francês.

O silêncio permanecia durante 24 horas. Era o dia da compaixão da Paixão do Cristo Redentor.

Hoje, aqui na praia, bandas com som altíssimo tocam para atrair praieiros para bares e restaurantes. A Sexta Feira da Paixão virou somente um feriado, apesar do peixe à mesa e da ida à igreja dos fiéis. Emissoras de rádio e TV cumprem a programação diária normal. Os repórteres visitam as igrejas e mostram cenas das reproduções teatrais ainda exibidas no Nordeste, principalmente como atração turística.

Mas o silêncio ainda grita no meu coração. E as palavras calam, enquanto me inebrio com as lembranças lindas que tenho da minha infância numa Aracaju que abraçava os filhos.

* É jornalista

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1 Comments

  1. Borges disse:

    Grande jornalista, Clara Angélica Porto. João Alves Folho a admirava. Ela fazia sempre as versões para o inglês de trabalhos técnicos que J.A, queria levar para o BIRD e BID.

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