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Olavo chega ao Hades

Por Lelê Teles *

é sabido que morreu, se viveu mesmo ninguém sabe” – Mestre Cafuna

Quando Caronte, o barqueiro do inferno, enfiou a vara no incandescente rio de lavas, ainda na margem do Estige, impulsionando a gôndola na qual o espírito do fiofólogo da Virgínia fez a sua derradeira viagem, o mundo dos vivos já era um lugar melhor.

“É a primeira vez”, disse, em tom de galhofa, o mítico e cabeludo argonauta dos círculos trevosos, “que chega aqui nestas últimas paragens uma alma cujo hospedeiro morreu de uma enfermidade que não existe”.

Olavo, que já foi de Carvalho, tremia como um graveto de amora.

Rangendo os dentes de frio e sentindo a dor gélida dos ossos álmicos, embora estivesse cercado de fogo por todos os lados, o insolente e rabugento espírito de Olavo murmura, entre pigarros: “Dante é um idiota, como idiota também é esse poeta de araque, o Virgílio”.

Ao ouvir esses desatinos, o horripilante condutor de almas penadas sentenciou: “Nos círculos sombrios em que viverás, agora morto, infeliz e repugnante assombração, tu serás apenas mais um idiota entre os idiotas a dizer idiotices, logo te cansarás da própria voz”.

Caronte, criatura cética e insensível, já ouviu toda sorte de disparate dos espectros que conduz ao círculo dos imbecis jactantes e dos canalhas autoelogiosos, a ladainha é sempre a mesma.

“Não era o senhor que cria que a terra era redonda e que o triângulo era quadrado?”, pergunta a criatura enquanto a barcaça singra o magma do rio escaldante.

Ao que o holograma de Olavo, percebendo finalmente que tudo, enfim, se findara, responde em tom humilde de quem tem o rabo enfiado entre as patas traseiras: “a carne que outrora revestiu essa alma depenada a que inquires, hoje habita um buraco escuro e úmido, é só um cadáver a ser roído pelos vermes, isto que vês é somente um fantasma e ninguém se importa com o que pensam os fantasmas”.

“Aqui mando eu, e se te pergunto é porque quero saber”, cortou a criatura abismal.

Olavo, enfim, como um prisioneiro que se entrega, dá o braço a torcer: “Errei em tudo, perdi a família, não tive amigos, vivi nas estranjas como um refugiado, atirando covardemente contra animais que não podiam se defender, fiz da mentira a minha verdade, vendi livros para um público que não lia e fui bajulado por imbecis; tive, por assim dizer, a glória inglória dos tolos”.

O eco da gargalhada de Caronte faz tremer as paredes obscuras do Hades: “não te esqueças da pandemia, seu pândego, chegastes até aqui por zombar de uma terrível enfermidade”.

A conversa, gravada a carvão pelo gravurista da eternidade, Gustave Doré, mostra uma sombra retorcida de Olavo, a exibir um sofrido e terrível esgar de boca, como o homem da ponte de Munch.

No espelho negro do rio, de lavas turvas e luminosas, são projetadas imagens de crianças morrendo de fome, centenas de milhares de cadáveres sendo enterrados em valas comuns, mendigos a esmolar; um retrato horrível da miséria humana!

“Vês o mal que provocaste no mundo? Essas projeções te acompanharão daqui por diante”, diz a criatura da vara em punho, enxotando o espectro repugnante.

Ao chegarem às margens do Aqueronte, Olavo foi entregue aos Cérberos, cães dos infernos, que arrastarão o molambo andrajoso infinitamente, de um lado para o outro, num sofrimento interminável.

Como morreu na miséria e devendo uma chupada de cu em Caetano, a filha, que sequer foi ao velório do velhaco, não depositara a moeda na boca do cadáver, útil para pagar a travessia do imundo submundo do Hades.

Por isso, o marginal vagará pela terceira margem do rio, solitário, soturno e sonâmbulo.

O desgraçado sentirá a desgraceira ad aeternum, perambulando no vazio límbico; um nada entre nadas, nadificado em niilidades.

Palavra da salvação.

* É jornalista, publicitário e roteirista.

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