Marcos Cardoso*
A ditadura militar implantada a partir do golpe de março de 1964 atingiu o máximo da brutalidade em Sergipe com a Operação Cajueiro, assim cognominada pelo Exército. No dia 20 deste mês de fevereiro, fez 45 anos que uma força especial vinda da Bahia, sob as ordens do general linha-dura Adyr Fiúza de Castro, comandante da 6ª Região Militar, sediada em Salvador, prendeu arbitrariamente 25 sergipanos, processando 18 deles, além de processar também o então deputado estadual Jackson Barreto, que não chegou a ser preso. Essa força especial reunia elementos do temível DOI-CODI, do DOPS e da Polícia Federal e agiu em Aracaju sob as ordens do tenente-coronel Oscar Silva.
A acusação, que nem cabia a alguns deles, era de serem ligados ao proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB). A operação realizada a partir de uma tarde de 1976, véspera de Carnaval, obedecia na verdade a uma ordem nacional que era a de acabar com o Partidão, a exemplo das demais siglas clandestinas. No bojo desse recrudescimento da onda anticomunista, foram assassinados nas celas do DOI-CODI, em São Paulo, o jornalista Wladimir Herzog, em outubro de 1975, e o operário Manuel Fiel Filho, em janeiro de 1976.
“Em início de 1976, enquanto as demais organizações de esquerda estavam praticamente desativadas (o PC do B havia sido vencido na sua experiência no Araguaia em 1974), o PCB, além de possuir representantes na Assembleia Legislativa (Jackson Barreto) e na Câmara de Vereadores (Jonas Amaral), praticamente controlava o Sindicato dos Petroleiros, o Sindicato dos Bancários, alguns centros acadêmicos da UFS e o DCE. Tinha militantes ativos junto aos trabalhadores rurais e exercia alguma influência em diversos órgãos da sociedade civil e do Estado. Nas circunstâncias de então, era uma presa invejável para qualquer sigla clandestina, fato que os militares não ignoravam. Daí a intensificação das perseguições”, conta o historiador Ibarê Dantas, em “A Tutela Militar em Sergipe – 1964/1984”.
Dentre os presos em Sergipe estavam pessoas hoje conhecidas, e vivas para contar a história, como os ex-vereadores Antônio Góis e Marcélio Bonfim, o aposentado da Petrobras Milton Coelho — que ficou cego devido à pressão da borracha que lhe vendava os olhos —, e o advogado Wellington Mangueira. Este, ainda debilitado por torturas e sevícias que sofrera ao lado da mulher, Laura Marques, em 1973, foi um dos primeiros a serem soltos, supostamente após assinar uma carta renegando a doutrina do comunismo — coisa que ele garante jamais ter feito.
O fato, a soltura de Wellington uma semana depois de iniciada a Operação Cajueiro, resultou em acusações injustas que até hoje alguns insistem em imputar contra ele. Os estudantes de Direito Carlos Alberto Menezes e Elias Pinho de Oliveira teriam sido presos por engano. Mas eles se articulavam com o PCB visando a eleição daquele ano, segundo observa o professor da UFS José Afonso do Nascimento, que integrou a Comissão da Verdade em Sergipe.
Nos mesmos dias das prisões, que se prolongaram até 23 daquele mês, os presos eram encaminhados para o 28º Batalhão de Caçadores. O comandante do quartel, o coronel Osman de Melo e Silva, havia sido afastado pelo general Fiúza de Castro, um explícito defensor da tortura que queria que seus homens ficassem à vontade para “trabalhar”. “Entre os depoimentos dos militares, colhidos pelos pesquisadores do CPDOC e publicados em três volumes, ninguém defendeu o uso da tortura de forma tão explícita como ele”, diz Ibarê Dantas. O historiador recorda o que aconteceu nos porões do 28° BC:
“No Quartel, segundo depoimentos de alguns deles, colocavam um capuz que pressionava fortemente os olhos com borracha, despiam-no e, algum tempo depois, vestiam um macacão. Submetiam a exame médico, trancavam numa cela incomunicável, e realizavam os interrogatórios entremeados de torturas, cujo nível dependia do estado de saúde e da capacidade de resistência do indivíduo (uma das curiosidades dos inquisidores era detectar onde se realizavam as reuniões clandestinas, para respaldar a acusação). Alguns que reagiram à prisão já foram recebidos debaixo de tapas. Quase todos teriam sofrido pancadas na cabeça, ‘telefones’, choques nas partes mais sensíveis do corpo, da língua aos testículos, bem como tentativas de afogamento, golpes na altura dos rins de ambos os lados do corpo, entre outras sevícias (alguns sergipanos teriam participado ativamente dessas operações, entre os quais o capitão Morais e até juízes de futebol ligados ao Exército: Siqueira, Barreto Góis, Cruz e Sargento Souza). Decorridos cerca de cinco a sete dias de padecimentos, os prisioneiros puderam comunicar-se com os colegas. Um deles, Milton Coelho de Carvalho, quem mais resistiu às torturas, quando lhe foi retirado o capuz, além das marcas de ferimento no rosto, comum a quase todos, estava com deslocamento incurável de retina. As três cirurgias posteriores a que foi submetido e os tratamentos demorados jamais lhe restituíram a visão.”
Em maio de 2009, a Caravana da Anistia do Ministério da Justiça julgou, na sede da OAB em Aracaju, 34 processos de sergipanos que se declararam vítimas do regime militar: 22 processos foram deferidos, as vítimas declaradas anistiadas e o presidente da Comissão de Anistia, em nome do Estado brasileiro, desculpou-se pelo sofrimento causado a cada um desses cidadãos que ousaram lutar pela democracia. Dezoito anistiados tiveram reconhecido o direito de serem indenizados ou de terem corrigidas indenizações anteriormente conquistadas. Um deles foi Antônio José de Góis, o Goizinho, que ficou decepcionado com a indenização de R$ 55.800. Preso na Operação Cajueiro, Goizinho foi torturado e permaneceu 21 dias encarcerado.
A Operação Cajueiro, passados já 45 anos, não deve ser lembrada como motivo de comemoração. Mas também não deve ser esquecida. Como uma ferida incurável que dói, deve ser rememorada por toda a vida. Para que arbitrariedades como essa jamais voltem a se repetir. Sob nenhum pretexto.
Relação dos presos na Operação Cajueiro em 1976
NOME | PROFISSÃO |
Antônio Bitencourt | Ferroviário |
Antônio José de Góis | Estudante e bancário |
Asclepíades José dos Santos | Vendedor ambulante |
Carivaldo Lima Santos | Ferroviário |
Carlos Alberto Menezes** | Advogado |
Delmo Naziazeno | Agrônomo |
Durval José de Santana** | Pedreiro aposentado |
Edgar Odilon Francisco dos Santos | Serventuário |
Edson Sales | Pedreiro |
Elias Pinho de Oliveira** | Advogado |
Faustino Alves de Menezes | Pequeno comerciante |
Francisco Gomes Filho (enviado PCB) | Pedreiro |
Gervásio Santos** | Jornaleiro |
Jackson de Sá Figueiredo | Advogado |
João Francisco Oséa | Pequeno comerciante |
João Santana Sobrinho** | Advogado |
José Soares dos Santos | Agricultor |
Luiz Mário Santos Silva | Agrônomo |
Marcélio Bonfim | Funcionário Público |
Milton Coelho de Carvalho | Funcionário da Petrobras |
Pedro Hilário dos Santos | Ferroviário |
Rosalvo Alexandre Lima Filho | Agrônomo e funcionário público |
Virgílio de Oliveira (Juca) | Ferroviário |
Walter Santos** | Professor e funcionário público |
Wellington Dantas Mangueira Marques** | Advogado |
**Não processados – Fonte: Ibarê Dantas, A Tutela Militar em Sergipe – 1964/1984
*Marcos Cardoso é jornalista e escritor. Foi diretor de Redação do Jornal da Cidade, secretário de Comunicação da Prefeitura de Aracaju, diretor de Comunicação do Tribunal de Contas de Sergipe e é servidor de carreira da UFS. É autor dos livros “Sempre aos Domingos – Antologia de textos jornalísticos” e do romance “O Anofelino Solerte”.