* Marcelo Rocha
O jurista progressista Italiano Luigi Ferrajoli é adepto do garantismo jurídico e auto-intitulado Juspositivista Crítico. O garantismo relaciona-se com o sistema de proteção e garantias existentes nas constituições democráticas, isso dito aqui com certa licença – para facilitar o entendimento – ante a real complexidade do assunto.
Em sua obra “Poderes selvagens – A crise da Democracia italiana”, ele observa um fenômeno delicado ocorrido em sua pátria, devido à quebra dos limites e controles do exercício do poder (especificamente o poder Executivo), que tendeu a transformar o poder democraticamente constituído na democracia representativa italiana e harmônico até então, em poder absoluto e por isso, imediatamente, em um poder selvagem.
Na obra, observa-se de modo fácil, que esse tipo de exercício de poder ofende e se opõe ao modelo do Estado Constitucional – que tem a Constituição como sistema de normas que a todos, sem exceção de qualquer um dos 3 poderes constituídos, submete e regra a convivência – tanto entre todos os cidadãos quanto entre estes e os poderes.
Afinal, cabe às Constituições democráticas, estabelecerem, dentro dos limites de cada poder, a “esfera do indecidível”, daquilo que os poderes simplesmente não podem decidir, devendo somente obedecer a vontade do povo expressa na Constituição. Um exemplo disso é o direito à vida: em nenhum momento cabe a quem quer que seja, decidir se um indivíduo deve ou não viver, a nossa Constituição assegura à todos esse direito, sem exceções, no caput do Art. 5º.
Para ele, esse fenômeno ocorreu de modo acentuado entre 2001 e 2006, em um das gestões de Silvio Berlusconi como primeiro ministro. Época em que diversas leis violadoras da Constituição daquele país foram editadas. Algumas personalíssimas, serviam para salvar Berlusconi dos diversos processos penais que figurava como réu, outras atacavam os sistemas de direitos e garantias constitucionais à cidadania. Uma Lei bastante representativa do assunto é de 2010 (último mandato de Berlusconi), aprovada pelo Senado Italiano, determinando a proibição dele se apresentar na Justiça para responder pelos crimes os quais era réu.
Observa-se ainda, que para se chegar nisso foi necessário o incentivo ao populismo, através da idéia de que o chefe político antes e acima de tudo – principalmente da constituição – era a encarnação direta da vontade popular, justificando para ele o exercício de um poder diferenciado. E acima da Constituição, como já dito.
Pois bem, Berlusconi renunciou seu último mandato e sua história é marcada por escândalos de todos os tipos: de pedofilia a compra de políticos. Paul Ginsborg, escrevendo uma biografia sobre o mesmo, definiu que o populismo antidemocrático de Berlusconi e seu poder midiático foram uma ameaça real à Democracia Italiana.
Trazendo o problema à nossa realidade, é possível ver traços dele em decisões recentes em alguns tribunais pátrios que, relacionadas à casos notórios de desrespeitos à direitos consagrados na Constituição Federal como o sigilo das comunicações, decidem que determinados processos não precisam “seguir as regras comuns” (seguir as regras comuns significa seguir as leis penais e a constituição), por serem “excepcionais”.
Ora, saber que a Lei é e deve ser para todos é um dos motores que nos assegura a chamada segurança jurídica. Dizer que um processo não deve seguir as regras comuns, é a mesma coisa de dizer que num jogo de futebol, um dos times não precisa obedecer as regras comuns de não pegar a bola com a mão, de poder fazer falta sem ser penalizado ou de que o juiz não poderá marcar pênalti contra o time “incomum”.
O ódio em vigor nos faz cego ao tamanho da importância desses fatos, pois queremos destruir aquele que consideramos inimigos e a mídia – aquela mesma que Berlusconi usou muito em seu favor – alimenta-o diariamente. Ao escolhermos pensar com o fígado, abdicamos da opção de fazê-lo com a mente, o que nos impede perceber que essa regra de exceção pode se voltar contra qualquer um, materializando o que Kafka narrou em sua obra “O processo”.
Não seguindo regras comuns, Hitler sustentou por aproximadamente 2 anos uma guerra perdida. O fez não seguindo os conselhos e pareceres dos seus generais quanto a derrota eminente. Não seguindo regras comuns, nos últimos estertores da guerra, Hitler não teve o menor pudor em fardar idosos/crianças e lançá-los no front.
“Não há [mais] considerações gerais a fazer/ tá tudo ai… ta tudo ai/ para quem quiser ver.” (Chico Anysio e Arnoud Rodrigues/Baiano e Novos Caetanos).
* Marcelo Rocha é capitão da Polícia Militar de Sergipe