Por Ricardo Nunes *
O Centro da cidade é onde habita o seu coração. É o lugar onde pulsa a sua energia mais antiga de origem e criação. É neste espaço onde os primeiros que chegaram tiveram o sentimento de que ali poderia nascer uma cidade. E ali ela nasceu! A praça, a rua principal, a prefeitura, a igreja, o primeiro casario, o primeiro hotel para acolher os visitantes, o primeiro cinema e a feira compunham este coração pulsante. Daí, como uma teia, a cidade lentamente vai ocupando o seu lugar, crescendo o seu corpo, abraçando em seu seio os que nascem e adotando maternalmente os que lhe chegam. E nessa união de casas, ruas, pessoas, histórias, sentimentos e emoções, a cidade, como casa, abriga o seu povo nas suas igualdades e diferenças. Aí então, passam a viver os conterrâneos. Os que são da mesma terra. Os que nasceram e os que vivem sob a pulsação desse coração que habita o seu Centro. Este Centro guarda para sempre as raízes da história, o orgulho de pertencermos a cidade, o sentimento de ser dela um cidadão. O Centro é a sala de estar da cidade. Onde orgulhosamente recebemos os nossos visitantes.
Ao menos deveria ser assim! Mas no Brasil, infelizmente não o é.
Os Centros das cidades brasileiras, com toda a sua importância histórica, arquitetônica, política, econômica e afetiva tornaram-se um dos piores lugares da cidade. Abandonados pelos governos, entregues as suas próprias sortes , estes Centros são hoje uma extensão da periferia mais pobre da cidade. De dia o comércio popular, informal, caótico e barulhento. De noite trotoir de putas, travestis,rejeitados e sem teto.
Daqui surge a pergunta que há muito me inquieta: por que o mais belo e sentimental lugar da cidade é jogado ao esquecimento e decadência?
Como podemos, como cidadãos filhos dessas cidades deixar que os seus corações parem de bater?
Vivi em Recife por sete anos na década de setenta enquanto cursava a faculdade. Morei muito próximo ao Centro. Na rua do Progresso. Em sete cinemas eu chegava a pé pelas largas calçadas da avenida Conde da Boa Vista. Caminhar era um prazer envolvido pela bela arquitetura de séculos antigos e moderno. O Centro contava a história da origem da cidade. O prazer de caminhar se somava às emoções dos filmes assistidos e aos chopes no bar Savoy, no Mustang e na livraria Livro Sete.
Estive há pouco em Recife, e sozinho decidi caminhar pelo velho Centro em busca dos meus cinemas, dos meus bares e livrarias. O que vi foi algo que não conseguia processar em minha cabeça e no meu coração. Ruas abandonadas. Quase todos os prédios fechados. Cinemas depredados. Rio Capibaribe apodrecido com suas margens tomadas pelo mangue. Desvalidos perambulando por calçadas imundas em busca da vida que perderam. Não era a mesma cidade onde vivi. O Centro do Recife tornou-se, como todos os outros das cidades brasileiras, a extensão de sua periferia mais miserável. Quando o Centro de uma cidade perde a sua vitalidade, não há dúvida, a cidade esta muito doente. Por que isto acontece?
O Brasil é um pais apartado, dividido entre ricos e pobres. Isto não podemos negar e disto não podemos fugir. Somos duas sociedades distintas: ricos e pobres. Com direitos, leis, territórios, serviços e cultura muito diferentes. Não conseguimos nos libertar da casa grande e da senzala. Estamos divididos por ignorância, preconceitos, intolerância, muros e cercas elétricas. Essas duas sociedades nunca conviveram nem convivem solidariamente. Mesmo sendo uma apenas 20% de toda a população é ela que manda, e a outra forçosamente obedece.
Os Centros sempre foram um grande espaço democrático. Pertenciam e eram usados por toda a população. Comércio, serviços públicos, mercado central, hotéis, transporte urbano, cinemas de rua, chaveiros, sapateiros e todo tipo de serviços que resolvia tudo ou quase tudo para todos. A medida que as cidades crescem, aumenta exponencialmente a população pobre. Com isto, a presença deles nos espaços democráticos das cidades passa a incomodar em certa medida os ricos, que buscam resolver a separação e tem os seus meios econômicos, arquitetônicos e urbanísticos de fazê-lo. Mudam o seu comércio de rua para os bairros onde moram, criam os shopping centers e seus cinemas, levam centros governamentais e hotéis para a sua proximidade, hipermercados substituem o mercado central, e assim largam o Centro aos pobres, que o ocupam e passam a usá-lo cada vez mais, com a ordem natural dos esquecidos. Mesmo sendo os ricos os proprietários de todos os imóveis do Centro, veem nesse mercado pobre mas imenso, a possibilidade de altos ganhos financeiros, sem a necessidade de fazer maiores investimentos em seus prédios decadentes. E assim, muitos ganham muito alugando os velhos casarios que já foram o orgulho da antiga cidade.
Por termos uma elite econômica e política que foca mais no atraso do que na glória do Brasil, em vez de estruturar núcleos de comércio em todos os bairros e preservar o Centro como um patrimônio histórico e artístico de todos, preferem caminhar pelos belos Centros de Buenos Aires, Santiago, Paris e Lisboa, a olhar com sabedoria e orgulho para a sua própria história. Como diz o sociólogo Jessé Souza, é a nossa elite do atraso.
* É graduado em Arquitetura pela Universidade Federal de Pernambuco(1976), mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal de Sergipe(2005) e especialista em Planejamento Urbano pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas(1983). Foi secretário de planejamento de Aracaju por 8 anos. Atua como arquiteto com ênfase em bioarquitetura, sustentabilidade e ecourbanismo.
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Excelente artigo,esclarecedor e poético