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Quilombolas de Sergipe denunciam racismo

O Incra rechaçou as acusações de perseguição e racismo institucional (Foto: Evaristo Sá / AFP)

Por Daniel Giovanaz *

A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) prepara uma denúncia contra a atual gestão da superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Sergipe por racismo institucional e perseguição a servidores.

“Estamos organizando uma audiência na Comissão de Direitos Humanos da Câmara [dos Deputados], vamos fazer essa denúncia no Conselho Nacional de Direitos Humanos, e também queremos levar à Corte Interarmericana de Direitos Humanos não só a situação de Sergipe, mas a paralisação das políticas em todo o Brasil”, afirma Biko Rodrigues, coordenador da Conaq.

A reportagem entrou em contato com a superintendência do Incra em Sergipe, que rechaçou as alegações e apresentou sua versão sobre cada um dos temas citados. Confira resposta na íntegra ao final desta matéria.

Contexto

Sergipe foi o primeiro estado a incluir quilombolas como beneficiários da política de crédito da reforma agrária, a partir de uma portaria assinada pelo Incra nos últimos meses de governo Dilma Rousseff (PT), em abril de 2016.

O pagamento começou a ser feito no ano seguinte e serviu de exemplo para implementação em outras regiões do país.

Entre os primeiros beneficiados, estavam famílias do território Mocambo, em Porto da Folha, a 185 km da capital Aracaju, que receberam R$ 5,2 mil para a aquisição de bens de primeira necessidade.

Créditos como esse foram concedidos em 17 estados até setembro de 2020, quando a política foi interrompida, já no governo Jair Bolsonaro (sem partido).

Biko Rodrigues ressalta a gravidade dessa paralisação em plena pandemia de covid-19, que acentuou a fome e a pobreza no Brasil.

“O crédito é a liberdade do agricultor. Ele dá condições para que os quilombolas possam melhorar sua produção, comprar sua farinheira, melhorar sua qualidade de vida”, exemplifica.

Quilombolas de Sergipe costumam plantar feijão, mandioca e hortaliças, além de criar animais. O desmonte de programas de aquisição de alimentos pelo Estado atinge diretamente essas comunidades.

“O agricultor não quer nada de graça, só quer que o Estado lhe forneça condições para produzir seu alimento, e o excedente para comercialização. Estamos vivendo uma crise de alimentos no país e, se o crédito tivesse chegado no momento certo, talvez muitas famílias não estariam passando fome”, acrescenta Rodrigues.

A superintendência regional do Incra diz que, para autorização do crédito, é necessário “que o território seja titulado ou que o Incra tenha emitido o Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU) das terras.”

Segundo a última versão da Base de Informações Geográficas e Estatísticas sobre Indígenas e Quilombolas, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 51 dos 75 municípios de Sergipe têm localidades quilombolas.

Com o 5º menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre 27 estados brasileiros, Sergipe possui ainda 90 localidades quilombolas fora de territórios oficialmente delimitados.

A denúncia

O fim do pagamento de créditos, há pouco mais de um ano, coincidiu com a paralisação dos processos de regularização fundiária, de acordo com a Conaq.

A superintendência do Incra nega ter havido paralisação e diz que “possui 24 processos de regularização de territórios quilombolas em diferentes fases, desde a elaboração de relatórios técnicos de identificação e delimitação até a fase de desintrusão.”

Desintrusão é a retirada de quem se apossou de um imóvel ilegalmente ou sem autorização do proprietário.

Lideranças quilombolas de Sergipe relataram a sensação de abandono no último dia 4, em uma audiência com o Ministério Público Federal (MPF), com servidores do Incra e com o representante da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado de Sergipe (Alese), deputado Iran Barbosa (PT).

Nessa reunião, o MPF reafirmou que o pagamento de créditos da reforma agrária a quilombolas é legal e deve ser retomado imediatamente – assim como os processos de regularização fundiária e licenciamento ambiental.

Se não houver iniciativa da parte do Incra, a procuradora Lívia Tinoco informou que pretende ajuizar uma ação civil pública para garantir o cumprimento da Constituição.

“No dia seguinte [à audiência], cedinho, o superintendente do Incra pegou um avião e foi a Brasília tentar amarrar politicamente a perseguição dos servidores que vinham autorizando o pagamento de créditos em Sergipe. Alguns deles, inclusive, estavam na audiência do dia 4”, relata o coordenador da Conaq.

Ainda segundo Biko Rodrigues, este mês os servidores que autorizaram o pagamento de créditos a quilombolas no estado foram alvo de processos na Controladoria-Geral da União (CGU) e até de denúncias na Polícia Federal.

O Brasil de Fato aguarda acesso aos documentos para confirmar o teor dos processos, o número e o nome dos servidores investigados.

Para a Conaq, esses processos são uma tentativa de desencorajar o cumprimento da Constituição e da Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 742 – que recomenda que o Incra avance na garantia de direitos das comunidades quilombolas mesmo na pandemia.

“O que a gente tem percebido é um racismo institucional na execução dessa política, promovido pela atual gestão do Incra em Sergipe, e a criminalização judicial dos servidores que pagaram crédito a famílias quilombolas”, ressalta Rodrigues.

“A atual gestão não sabe trabalhar o desenvolvimento dessa política e está pouco se lixando se vai para frente ou não. Mas, para agradar o chefe maior – o Bolsonaro, que é contra a política quilombola –, eles estão nessa caça às bruxas.”

Em 2017, Bolsonaro fez declarações ofensivas a quilombolas e prometeu lutar contra a demarcação de terras.

“Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Acho que nem para procriador ele serve mais”, disse o então pré-candidato, durante palestra no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro (RJ).

“Pode ter certeza que, se eu chegar lá [na Presidência], no que depender de mim, não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola.”

Ao usar o termo racismo institucional, a Conaq considera que a atual gestão do Incra em Sergipe não vê os quilombolas como público merecedor de créditos nem como sujeitos de direitos.

“A acusação de racismo institucional está ligada à forma com que o superintendente [Victor Sande] tem tratado os quilombolas. Quando os quilombolas vão ao Incra, ele trata na rua. Os fazendeiros, ele recebe no gabinete”, explica o coordenador da Conaq.

“Em outros estados, também não está andando a regularização fundiária, mas a gente não tem visto perseguição como no estado de Sergipe.”

Outro lado

O Brasil de Fatoapresentou as críticas e questionamentos à superintendência do Incra.

Confira a resposta na íntegra:

“A acusação de racismo institucional não procede, visto que a Superintendência Regional do Incra em Sergipe não suspendeu as ações relativas à regularização fundiária de territórios para comunidades remanescentes de quilombos no estado.

A regional possui 24 processos de regularização de territórios quilombolas em diferentes fases, desde a elaboração de relatórios técnicos de identificação e delimitação até a fase de desintrusão.

É necessário esclarecer que no período da pandemia, iniciado em 2020 e ainda vigente, as atividades de campo foram inicialmente suspensas e posteriormente retomadas com restrição a fim de reduzir a disseminação do coronavírus.

Em que pese a restrição orçamentária para a aquisição onerosa de imóveis rurais particulares com vistas à destinação de terras para as comunidades quilombolas, a atual gestão da regional em Sergipe promoveu diversas ações desde agosto de 2020, destacando-se por exemplo:

 – Operacionalização, acompanhamento e fiscalização da concessão de modalidades do Crédito Instalação em seis comunidades;
– Publicação dos Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID) das comunidades Terra Dura/Coqueiral (Capela) e da Bongue (Ilha das Flores), atualmente em fase de contestação, conforme a Instrução Normativa Incra nº 57/2009;
– Pedido de expedição de quatro Títulos de Domínio de imóveis situados no território Lagoa dos Campinhos e Serra da Guia, com área total de 103,6811 hectares;
– Elaboração de edital de georreferenciamento, para fins de titulação, incluindo 18 imóveis rurais inseridos em territórios (Serra da Guia, Lagoa dos Campinhos e Mocambo), com área total de 2.196,24 hectares e perímetro de 83,77 km;
– Desapropriação e imissão na posse de um imóvel rural para a comunidade Serra da Guia, com área de 551,9106 hectares, avaliado em R$ 2.547.790,43;
– Destinação e titulação das Ilhas da Criminosa e da Lagoa às comunidades Brejão dos Negros e Ilha da Lagoa, respectivamente.

Em relação à política de crédito, o instituto esclarece que a possibilidade de inclusão das comunidades remanescentes como beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária tem como marco administrativo a exigência de que o território seja titulado ou que o Incra tenha emitido o Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU) das terras. Tal entendimento segue o disposto na Portaria INCRA/MDA nº 175, de 19 de abril de 2016, e no PARECER nº 00011/2016/CGA/PFE-INCRA-SEDE/PGF/AGU.

Desta forma, nem todas as comunidades no estado estão aptas a acessar as modalidades do Crédito Instalação, ofertado pelo Incra aos beneficiários da reforma agrária. É preciso reafirmar que a política de pagamento de créditos não está paralisada, mas está restrita aos territórios que possuem CCDRU ou Título de Domínio (TD), que são: Serra da Guia (Poço Redondo), Mocambo (Porto da Folha), Brejão dos Negros (Brejo Grande), Pontal da Barra (Barra dos Coqueiros), Pirangy (Capela) e Lagoa dos Campinhos (Amparo do São Francisco).

A instauração de procedimentos de fiscalização da concessão de Crédito Instalação para comunidades remanescentes no estado por parte da Auditoria do Incra e da Controladoria-Geral da União (CGU) não constituem perseguição ou assédio. Constituem na verdade medidas importantes de verificação da regularidade, legalidade, eficiência e eficácia da gestão dos recursos públicos. Neste sentido é importante lembrar que todas as ações do Incra estão sujeitas à avaliação, monitoramento e fiscalização por parte da unidade interna e dos órgãos externos de controle.

Também é inverídica a acusação de que o atual superintendente regional do Incra no estado pratique racismo institucional. Em nenhum momento o gestor deixou de prestar esclarecimentos e informações sobre as ações do instituto, tendo recebido representantes ou membros das comunidades quilombolas conforme disponibilidade na agenda.

Em relação à afirmação de que o superintendente recebeu os quilombolas na rua, é preciso afirmar que um grupo de mais 60 pessoas compareceu à regional para solicitar audiência com o gestor.

 Considerando as restrições no atendimento ao público impostas pela pandemia de covid-19 e em conformidade com os cuidados necessários a fim de reduzir o risco de contaminação, o superintendente realizou uma conversa inicial no estacionamento da unidade, dada a impossibilidade de receber todos no gabinete. Como a reunião não foi agendada previamente, possibilitando a preparação de espaço e disponibilização de máscaras e álcool em gel, o gestor atendeu grupos reduzidos por comunidade nas instalações da superintendência.

 Por último, a gestão do Incra em Sergipe reitera que está agindo e entregando à sociedade as políticas públicas devidas dentro da estrita legalidade e com total responsabilidade.”

* Do Brasil de Fato

 

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