Em minhas andanças pelo Sertão Sergipano, constatei a produção do Requeijão do Sertão, tipo de queijo considerado por alguns como um queijo defumado e com alto teor de gordura, encontrado em municípios do Sertão baiano, circunvizinhos a Sergipe e na porção Sul nas proximidades do norte de Minas Gerais, região igualmente produtora da referida iguaria.
No Estado de Sergipe, esse alimento possui uma espacialização particular, decorrente de nuances… e sua elaboração está restrita às raras comunidades, povoados e localidades cuja tradição e saber-fazer foram repassados, no âmbito familiar, de geração em geração. Apresentar esta estratégia significa descortinar o sentido dessa produção para a vida de mulheres e homens, identificando as relações entre eles o espaço e seus desdobramentos associados à atividade.
Para apreendê-la em sua plenitude, priorizou-se o registro da dinâmica familiar, dos fluxos espaciais, do aproveitamento e exploração dos recursos, dos hábitos alimentares e da criação, manutenção e dimensão cultural e histórica desse alimento.
O desenho da ocupação da região sertaneja sergipana encetou no século XVI, com a doação de grandes e pequenas glebas de terras pela Coroa Portuguesa, visando firmar a posse das terras, então ameaçadas pelas invasões holandesas. Embora tenham participado em seu povoamento outras categorias, o Sertão tem no vaqueiro um dos agentes precursores da ocupação, que por meio do sistema de quarteação, acabou por se transformar em criador, dando origem a uma estrutura de pequenos pecuaristas, que persiste até os dias atuais (DINIZ, 1999).
Bovinos resistentes
Os bovinos, tendo se aclimatado ao ar seco e saudável, alimentavam-se das gramíneas naturais existentes. A forragem encontrada no meio da caatinga não apresentava alto potencial nutritivo, mas propiciava a subsistência dos rebanhos rústicos e resistentes, adaptados às condições naturais que, ainda, faziam-se presentes em reduzida taxa de ocupação por hectare. No período do inverno, com a chegada das chuvas, os vaqueiros juntavam os animais, conduzindo-nos para as sedes dos estabelecimentos rurais. Para a obtenção do leite, as vacas eram apartadas no dia anterior, no final da tarde, sendo a ordenha tarefa realizada sob responsabilidade da mão-de-obra masculina. Aproveitava-se o leite para a alimentação diária e na elaboração do Queijo de Coalho, manteiga e, em alguns estabelecimentos, do Requeijão do Sertão, esses a cargo das mulheres.
A prática cultural da elaboração desses derivados de leite foi transmitida pelos antepassados ao domínio feminino, sendo o interior das residências o território destinado à sua produção. Esse saber-fazer interiorizado pelas mulheres tinha finalidade quase que exclusivamente voltada à alimentação da própria família. Ao receber visitas de parentes e amigos que habitavam nas áreas urbanas distantes do sertão, fazia parte da tradição sertaneja presenteá-los, no momento da partida, com um Queijo de Coalho ou um Requeijão do Sertão. A dádiva era sempre recebida com grande alegria pelos visitantes, que enfatizavam ser aquele produto um meio de prolongar a recordação da alimentação e dos momentos desfrutados no meio rural.
A pecuária, apesar de ser ali a principal atividade econômica até a metade do século XX, apresentava-se ainda pouco intensiva, os bovinos sendo criados soltos, em vegetação nativa pouco modificada. Constatada sua limitada produtividade, o Estado articulou e fomentou políticas públicas, como o Projeto Sertanejo, com o objetivo de incrementar a atividade pecuária, geradora de maior rendimento e perdas reduzidas, quando comparada à agricultura.
Expansão da pecuária
Na década de 1970, ocorreu, nos estabelecimentos pertencentes a camponeses do Sertão Sergipano, a expansão da pecuária leiteira. O pequeno estabelecimento rural (com até 50 ha), anteriormente ocupado com lavouras de milho, feijão, mandioca e algodão (consorciados), foi modificado, com a inserção de pastagens direcionadas ao gado leiteiro. A intensificação do sistema agro-pastoril transformou a paisagem sertaneja em um “grande pasto”, sendo introduzidos – em detrimento do gado rústico, denominado nessas cercanias de “pé duro” – animais de raças especializadas (holandesa, gir leiteiro, girolando, entre outras), com o objetivo de aumentar a produção de leite.
A despeito dessa realidade, os sertanejos ainda guardam na alimentação o uso de produtos típicos da culinária nordestina, entre eles os derivados de leite. Entretanto, entre os queijos produzidos, o Requeijão do Sertão, restrito a poucas comunidades, apresenta peculiaridades e quase desaparece no maior mercado consumidor, a capital Aracaju.
A elaboração desse alimento está sob responsabilidade de mãos femininas e, em suas narrativas, as sertanejas trazem lembranças de suas histórias de vida, de como aprenderam o ofício, as dificuldades na produção e o presente desinteresse dos mais jovens. Era comum escutar
Na minha família, todas as mulheres aprendiam a fazer esse queijo para aproveitar o leite obtido na propriedade. Com a migração, principalmente na década de 1970, muitas foram embora e levaram consigo a experiência.
No espaço urbano da capital do Estado, o saber-fazer desse produto tem, em decorrência da escassez da matéria-prima, se perdido. Mas as que continuaram no meio rural passaram, na década de 1980, a elaborar o produto, com o objetivo de gerar renda complementar. Em alguns períodos, a produção dos derivados de leite transformou-se na principal fonte de recursos do estabelecimento rural.
Criação de suínos
Relacionada a essa atividade, as mulheres desenvolvem, ainda, a criação de suínos, aproveitando-se do soro do leite para a alimentação desses animais, engendrando outra fonte de renda, considerada como uma “poupança”. Da mesma forma que para as produtoras do Queijo de Coalho caseiro no Sertão Sergipano, para as produtoras de Requeijão do Sertão o suíno é sua poupança, resgatada nos momentos das necessidades – como no caso de doença, na compra de um bezerro ou de um eletrodoméstico.
O produto tem demanda assegurada, pelos comerciantes, que semanalmente o buscam no estabelecimento rural, junto às produtoras, realizando o pagamento, comumente, após oito dias.
Foi constatado que o maior mercado consumidor do produto é a região agrestina, área de transição entre o litoral e o Sertão Sergipano. Segundo declara um consumidor, do município de Itabaiana:
Consumia esse requeijão na minha infância, produzido no sertão baiano e sergipano. Esse é um queijo diferente dos outros, pois é muito mais forte, por isso a gente comia pela manhã com o cuscuz, antes do trabalho nas lavouras, e não sentia fome durante muito tempo. Continuo a comer esse produto e nunca tive problema de saúde. (Melquiades Rezende, 99 anos).
Maior consumidor
Atualmente, o mercado de Itabaiana apresenta o maior número de pontos de vendas de Requeijão de Sertão, abastecendo os consumidores da região. Observou-se que os consumidores desse produto são principalmente adultos e idosos. É comum, no momento da aquisição do produto, os consumidores discorrerem sobre as razões da continuidade do consumo do produto. Alegam a tradição do consumo desde a infância e, mesmo com problemas de saúde, buscam o produto com menor intensidade e quantidade, mas procuram manter a identidade ao consumir o queijo. Todos os consumidores referem-se, da mesma forma que o Sr. Melquiades, a aspectos que remetem à simbologia do alimento, considerado como o “queijo mais forte”.
Mas, por que esse produto não atrai os jovens, na atualidade? De acordo com os relatos dos consumidores, a oferta de queijos no estado de Sergipe é grande e também há uma preocupação com a questão da saúde, razão que influencia a busca por queijos “mais fracos”, como a Mussarela e o Queijo de Coalho sem maturação. Consumidoras entrevistadas ponderam que antigamente os jovens consumiam esse produto, pois buscavam alimentos “fortes”, necessitavam desses alimentos em sua labuta diária, no setor agrícola. Com o êxodo rural e a redução do trabalho no campo, os jovens, na atualidade, consomem esses queijos “mais leves” com o receio do consumo de produtos gordurosos.
Mas, como é produzido o Requeijão do Sertão? Quais as mudanças inseridas no sistema de produção? De acordo com as produtoras entrevistadas, elas utilizam em média 20 litros de leite para a produção de cada quilo. Deixa-se coalhar o leite de um dia para o outro, faz-se a lavagem da massa com leite, várias vezes, para retirar a acidez; ao final, adiciona-se a manteiga obtida com a nata retirada da coalhada.
Aproveitar o leite
Antigamente, segundo relato das produtoras, a elaboração do referido derivado era feita em alguns dias da semana, para aproveitar a produção de leite, sobretudo no período do inverno (estação chuvosa), quando as vacas produziam mais, em decorrência das pastagens naturais que se desenvolviam com as chuvas. No verão (estação seca), o leite tornava-se escasso e era utilizado principalmente para o consumo in natura e na alimentação dos bezerros.
Na atualidade algumas mulheres que produzem em uma escala maior, como D. Maria, em Nossa Senhora da Glória, alertam para as mudanças. Segundo ela, o leite do período de inverno, quando o gado é alimentado com pastagens, é mais forte e utiliza-se cerca de quinze a vinte litros para cada quilo de Requeijão do Sertão. Já no verão, os animais são alimentados com rações adquiridas no mercado e com forrageiras, como a palma, sendo necessário um maior volume de leite para produzir um quilo de requeijão.
Outra mudança relatada é a inserção, em alguns estabelecimentos rurais, da mão-de-obra masculina na elaboração do derivado. Em caso observado em Nossa Senhora da Glória, o leite é adquirido de vários produtores rurais, vizinhos ou parentes, o requeijão vindo a ser preparado em grandes tachos. Aí os filhos da produtora são recrutados para ajudar:
“Antes, não precisávamos da força masculina, uma vez que o leite utilizado era pequeno, só da propriedade. Agora, como não tem trabalho para eles, por aqui os meus três filhos ajudam na produção, buscando o leite nas propriedades e ou ajudando na elaboração”.
Mas, a responsabilidade continua sendo feminina.
Requeijão “apurado”
As fabriquetas de queijo, contam as mulheres, não elaboram o Requeijão do Sertão em razão do intenso trabalho demandado, preferindo elaborar queijos tradicionais, como o Queijo de Coalho, e outros tipos, como a Mussarela e o Queijo pré-cozido. Isso dada a facilidade de aprendizagem, diferente do saber-fazer do Requeijão do Sertão, que segundo as produtoras, deve ser “apurado”.
Observa-se que o saber-fazer do Requeijão do Sertão está restrito àquelas famílias que tradicionalmente o produziam. Nota-se que o domínio desse saber, transmitido de geração a geração, está desaparecendo, o que é evidenciado pelo baixo número de jovens interessados em reconhecer e explorar esse alimento. Constata-se, assim, o esgarçamento do conhecimento e do saber-fazer do Requeijão do Sertão, um patrimônio atualmente restrito a comunidades dos municípios de Nossa Senhora da Glória, Carira, Pinhão e Macambira. Em outros municípios, a produção desse queijo aparece esporadicamente.
Texto de Sônia de Souza Mendonça Menezes, geógrafa, professora da Universidade Federal de Sergipe.Também é coordenadora projetos de pesquisa que buscam resgatar a história da produção de queijos nos séculos XIX e início do século XX em Sergipe e as interfaces da produção e comercialização do Queijo de Coalho caseiro em Nossa Senhora da Glória.