* Por Marcelo Rocha
O cangaço e o narcotráfico foram movimentos eminentemente divergentes. Apesar de ilegais e cheios de ‘jefes’ famosos por seus poderes, violência e perspicácia, especificamente movimentavam tipologias criminosas extremamente diferenciadas, ocorreram em países diferentes e separados por pelo menos 5 décadas.
Aqui cabe uma explicação, pois o período do cangaço a ser tratado é o ocorrido quando da visita de Lampião a Padre Cícero, bem como o narcotráfico abordado é o que ocorre em meados da década de 80, que resulta, inclusive, na morte do agente Kiki Camarena.
O fenômeno do cangaço nordestino tem raízes no século XIX, com Lucas de Feira
e Jesuíno Brilhante. Com suas peculiaridades – e conjuntamente ao movimento beato messiânico, ajuda a explicar o nordeste e seu povo. O sistema de valores e a ausência do estado como instância reguladora das relações muito favoreceu o alistamento de homens que fugiam de abusos e injustiças cometidos contra si por mais fortes ou mesmo agentes da lei. O próprio João Lucena deu cabo do pai de Lampião, ao interrogá-lo. Mas isso não desfaz a matriz criminosa do cangaço, nem ameniza seus malfeitos e desmandos. Apenas ajuda a entender a complexidade do fenômeno.
O narcotráfico, no caso o da conexão americana, que teve sua hegemonia durante os anos 70 até meados dos 90 a partir de Pablo Escobar, na Colômbia, depois passando para o México a partir de nomes como Félix Gallardo, Amado Carrillo e Joaquim El Chapo Guzman, após o estabelecimento de sua conexão internacional, sempre se tratou de uma operação complexa. A partir dos anos 90 até os dias atuais, mas um movimento de transição materializado a partir dos anos 80.
Capilaridade, refinamento, somas vultuosas de dinheiro, logística intrincada e mortes em escala industrial sempre marcaram o narcotráfico. O cangaço tinha la´ sua complexidade, que merece atenção, por exemplo, mas tratava-se de uma operação compacta, quase individual.
Mas o que ambas possuem de simetrias, então?
Por ocasião da Coluna Prestes, o governo federal criou os Batalhões Patrióticos, um tipo de milícia complementar a força de primeira linha do exército, necessária ante as dificuldades que se presumia haver no embate entre os contingentes do exército regular e os integrantes da Coluna Prestes, vez que ambas eram constituídas por integrantes do próprio exército.
Na região do Cariri, ficou o Deputado Floro Bartolomeu, nomeado pelo governo federal como General Honorário do batalhão Patriótico e (operador político do Padre Cícero) responsável por formar tal batalhão. Ele logo convidou Lampião, que já era cangaceiro perseguido, oferecendo-lhe não apenas armas mais modernas e a patente de Capitão, mas também a anistia pelos crimes que cometera. Bartolomeu lhe ofereceu a patente de Capitão, com a qual se tornou conhecido, apesar de legalmente não haver sido de fato nomeado – não por falta de vontade de Floro, mas por motivo de doença do General, já que este viajara para tratar da saúde. Ainda assim, Lampião recebeu as armas modernas e de grosso calibre, além de fardamentos.
Ou seja, se Floro Bartolomeu estivesse em Juazeiro do Norte quando Lampião lá chegou, teria se tornado membro honorário do Exército Brasileiro, pois teria sido nomeado Capitão do Batalhão Patriótico do Ceará.
Já o narcotráfico de Cocaína, produto mais rentável do submundo do crime, tem crescimento notável a partir dos anos 70, superando a heroína, com protagonismo do crime organizado colombiano. É importante saber que, nesse ponto, que a planta que origina a cocaína, somente é cultivável na Bolívia, Peru. Pablo Escobar foi o responsável por alavancar a atividade, rumo aos EUA. Por muito tempo utilizou uma rota pelas Bahamas, junto aos seus associados.
Quando essa rota foi inviabilizada, teve que buscar outras alternativas. Ao descobrir que aviões saíam dos Estados Unidos carregados de Kalashnikov para entregar aos Contra – grupo revolucionário que lutava pra derrotar o ‘comunismo’ na Nicarágua, logo se ofereceu para ajudar os insurgentes, em uma operação que envolvia fuzis, dinheiro e remessa de cocaína aos EUA nos voos de volta.
O filme ‘Feito na América’, estrelado por Tom Cruise, retrata toda essa questão, pois conta exatamente a história do piloto que coordenou todo o esquema, no plano operacional. Barry Seal acabou morto, provavelmente a mando de Escobar, pois em uma das viagens, fotografou Pablo Escobar pessoalmente, ajudando a transportar uma partida de cocaína. Estamos falando aqui da tolerância ao narcotráfico que foi objeto do escândalo Irã contras.
Ambos, Escobar e Lampião apesar de todos os seus históricos e dos prejuízos em suas ações, em determinados momentos passaram a se tornar úteis e receberam benesses como num passe de mágica.
Lampião, principalmente ao receber o armamento moderno que recebeu, fuzis, aposentando as obsoletas carabinas de munição bastante inferior, reorganizou o seu reinado, devido à superioridade bélica súbita.
Escobar, através dos aviões de Barry Seal que levavam fuzis aos Contras, conseguiu reorganizar sua operação logística, mantendo o envio de grande quantidade de droga com segurança aos EUA.
Eis a simetria histórica entre ambos: em nome de um suposto mal maior, ambos foram beneficiados em suas atividades irregulares, institucionalmente.
O preço valeu a pena?
* Marcelo Rocha é Capitão PM e bacharel em Segurança Pública