Por Afonso Nascimento *
Em plena vigência do AI-5, a Divisão de Segurança e Informação (DSI) do MEC enviou ofício no.156 de 01 de fevereiro de 1971 ao reitor da UFS (BR_DFANBSB_AA2_0_0_0026_d0001de0001). Classificado como confidencial, a esse documento foi anexado um texto de cinco páginas intitulado “Considerações sobre EDITORAS BRASILEIRAS (o destaque não é meu) e sua ação ideológica antidemocrática”, que continha uma lista de livros considerados “marxistas”, “comunistas”, “suspeitos”, “de orientação esquerdista” etc.
O texto não era assinado por ninguém, mas, de forma curiosa, no lugar da assinatura estava datilografado: “Assinatura ilegível”. Pouco mais dois meses depois, em 13 de abril do mesmo ano, mediante o ofício confidencial no. 07, o reitor da UFS João Cardoso Nascimento Junior encaminhou o documento aos diretores de Centros e aos chefes de Departamentos.
Não encontrei nada dizendo o que os gestores deveriam fazer com o documento, por exemplo, esses livros não deveriam ser comprados pela UFS, os professores não devem adotá-los em seus cursos. Isso estava implícito, imagino. Os livros faziam parte da lista de livros proibidos ou não recomendados pelo MEC. Nesse período da ditadura militar, chamados por muitos como “anos de chumbo”, quem tinha juízo compreendia rapidamente qual era a mensagem passada pelo órgão do SNI.
As editoras que publicavam livros de orientação esquerdistas referidas, de acordo como documento do censor do MEC, eram as seguintes: Zahar, Vozes, Paz e Terra, Vitória, Vozes, Herder, Editora BUP e Civilização Brasileira. O censor explica que escolheu os livros da Zahar, uma editora especializada em livros de Ciências Sociais mais tarde comprada pela Companhia das Letras, porque publicava os livros mais procurados por estudantes universitários. Não há menção aos editores como sendo “subversivos” ou “esquerdistas” – como no caso de Ênio Silveira, editor da Civilização Brasileira, presos diversas vezes. O documento do censor tem cinco páginas e no seu espaço tem mais nomes de obras do que texto de sua autoria.
Não é texto acadêmico, mas de um policial, de um censor que faz propaganda política. O documento contém uma enorme citação do filósofo, matemático e pacifista inglês Bertrand Russell contra a Guerra do Vietnam, extraída do seu livro “Crimes de Guerra no Vietnam”, publicado pela Editora Paz e Terra, em 1967. Russell é absurdamente considerado como “filósofo notoriamente comunista”! Referindo-se à América Latina, Russell fala que “um bando de generais reacionários” (…) esmagou o governo democrático de João Goulart”. O censor também usa citação de Paulo Francis retirada da orelha desse mesmo livro, perguntando se a China de Mao Tsé-tung era o caminho a ser seguido pelo Brasil para se tornar uma potência mundial. O mencionado jornalista, à época um famoso intelectual de esquerda, afirma que o Brasil de 1971 não era uma democracia.
Vou me permitir o direito de não transcrever a referência completa dos quarenta livros e citar somente os nomes dos autores. E apontar as contradições do texto. O censor está interessado, como disse antes, em textos “marxistas”, “comunistas”, “esquerdistas”, “de orientação suspeita”. Naturalmente, o censor não leu todos os livros que cita. Para construção de sua lista, e possivelmente por causa de seus limites intelectuais, ele deve ter pego um catálogo da Zahar e encaixou os livros nas classificações tradicionais do conhecimento como Economia, Sociologia, Ciência Política, Moral, Cultura Histórica e Cultura Científica.
Como não há espaço para a referência completa das obras, passo a mencionar os autores dos livros publicados pela Zahar. Aqui estão eles: Carlos Marx, Paul Baran, Paul Sweezy, Rosa Luxemburgo, C. Wright Mills, Erich Fromm, Herbert Marcuse, Wilhelm Reich, Roger Garaudy, Robert Heilbroner, René Ballet, Cristopher Hill, Isaac Deutscher e muitos outros. Prova da miséria intelectual do censor é o fato de ele citar Georg W. F. Hegel na sua lista, talvez porque o filósofo alemão conservador escreveu sobre dialética! Há outros casos semelhantes a esse. Continuando, o censor só consegue mencionar um livro de “isento de ideologia filo-comunista” que trata da “opinião pública”. Não faz mal dizer que a editora Zahar tinha mais de mil livros no seu catálogo.
Sobre os nomes das obras relacionadas pelo censor, tenho a dizer que a maioria é de obras de autores gigantes do pensamento da Europa e dos Estados Unidos nas áreas econômica, sociológica e outras mais. O censor não estava, nem um pouco, à altura dos autores criticados. Além disso, a impressão deixada pelo censor é que ele não sabe de onde estava falando. Com efeito, ele fazia a crítica de obras de autores que escreviam na perspectiva marxista, etc. Ele quer que a juventude brasileira leia obras de suposto conteúdo democrático, mas se esquece que o Brasil vivia, em 1971, sob uma ditadura militar na sua fase mais violenta e que ele estava trabalhando para essa ditadura! A estreiteza mental do censor vai contra a liberdade de expressão e a circulação de ideais.
Não posso dizer se, em 1971, alguns dos livros proibidos pelo censor estavam na Biblioteca Central da UFS ou em alguma biblioteca setorial da mesma universidade. Em caso positivo, também não posso dizer que destino foi dado a tais obras. Não sei informar tampouco se os referidos títulos e obras foram tornados indisponíveis aos professores e estudantes da UFS. Só posso afirmar que, em qualquer tempo, governo ou gestão, a qualidade do ensino cai quando professores e estudantes sofrem restrições, censura e patrulhamento para acessar obras, dados e informações, independentemente da área do conhecimento. Sei, por fim, pelos registros consultados, que muitos professores tomaram ciência do documento confidencial encaminhado pelo censor do MEC e do texto do censor. Eis aqui alguns nomes: Lauro Pacheco de Oliveira, Alberto Carvalho, Carlos Augusto Ayres de Freitas Britto, Manuel Cabral Machado, Emmanuel Franco, Carmen Machado Costa, Wilma Alves de Souza, entre outros.
* É professor de Direito da UFS
(Texto publicado originalmente no Blog Primeira Mão)