Sobre tempestades e hemorroidas

Por Lelê teles *

em Brasília, sopra um vento frio e desumidificado, mendigos tremem sob marquises e sobre papelões, casacos são retirados dos armários, milhos cozidos fumegam nos fogões, assam-se pães de queijo, bebericam-se cafés, chás, vinhos…

uns vão de corote, outros de chimarrão; o importante é manter os corações aquecidos.

as cerejeiras, outrora adornadas de flores rosáceas, começam a se despir; o inverno está chegando, diriam os starks.

porém, dentro do palácio presidencial, contrariando a ciência meteorológica, o clima só tem esquentado.

“notícias do planalto dão conta de que as hemorroidas presidenciais começam a incomodar o palaciano”, resmunga vovó lizete, enquanto balança na cadeira de vime, tricotando um pulôver pro seu cãozinho biloca.

“hein”, gritou tia gorete, que tá ficando meio surda.

vovó lizete fala mais alto, levando as duas mãos à boca, em cone: “o capetão, gorete, tá sentindo a água lhe bater na bunda”.

“nau à deriva”, latiu biloca, caninamente.

tia gorete salta da cozinha à sala, com as mãos na cintura: “minina, tá um cabo de guerra dos diabos, isso; esticam a corda de cá, puxam de lá, onde é que a gente vai parar com tudo isso, lizete?”

“a corda sempre arrebenta do lado mais fraco, gorete. pra você ver, aquela piriguete nazistoide já foi trancafiada, o stf arrolou – com perdão da palavra – nada menos que uma dezena de deputados e um senador, youtubers tiveram as casas vasculhadas, a justiça vê indícios de crime nas transações imobiliárias do filho do homem, o tse vai pra cima da quadrilha que financiava e da que disparava lixo noticioso… como diria nosso ex-futuro embaixador em Washington, a chapa tá esquentando”.

enquanto as duas conversam, biloca, indiferente à política e estimulado pela taradisse quarentênica, simula transar com uma almofada: fuque, fuque, fuque…

quem nunca?

“parece que estamos diante de uma tempestade perfeita”, filosofou vovó lizete, sapiencialmente.

“será que o homem cai?”, cetificou gorete, caceteando biloca com um golpe de flanela: “ pare de tentar os outros, cão”.

brochado, biloca coloca o rabo entre as pernas e se deita, enrolado em si mesmo.

“pense comigo, gorete: os fascistas foram enxotados das ruas, que estão a ser ocupadas por democratas; corintianos e palmeirenses estão a jogar nesse mesmo time, bem como ciristas e lulistas, anitta e ludmylla; tem um tal de 70% aí que junta, nesse mesmo barco democrático, o frota, o pequeno kim, a joice, o amoedo, a marina, o huck, o diabo… esse sarapatel de coruja mostra que o outro lado da corda está se fortificando…”

biloca, curioso, levantou uma orelha e uma sobrancelha, olhando com um único olho para vovó, imitando o fiofólogo da virgínia que tá caolho como um pirata.

tia gorete vai até a cozinha e volta com uma bacia cheia de polvilho e queijo, fala enquanto amassa a massa:

“o centrão finge apoiar as bravatas do presidente, isso dura até o dinheiro cair na conta, depois, minha filha, é pé na bunda, conheço essa gente. a mão que que balança o berço é a mesma que apedreja, lembra do severino, aquele baixinho? jair brigou com deus e o mundo, vai ficar sozinho, com o rabo escorado na baioneta de uns generais de pantufas. pra você ver, depois de jogar fora os bagaços de bebiano, joice e que tais, e declarar guerra à justiça brasileira, num é que o presidente bloqueou a janaína pachoal, no twitter? janaína, minina, aquela da república da cobra… que vendeu um parecer de impeachment por 45 mil lascas…”

vovó meneia a cabeça, concordando.

“como diria o mano brown, uns juntando inimigo, outros juntando dinheiro…” latiu biloca, ainda incomodado pelo coito virtual interrompido.

tia gorete não gostou da intervenção canina: “o diabo desse cachorro dá opinião em tudo, nãn”.

vovó gargalha, biloca mostra um esgar de boca que parece uma risada.

“pois é, lizete, e por falar em corda cedendo, num é que carluxo voltou ao gabinete do ócio lá no ridjanêro e pediu desculpas aos vereadores, repare uma coisa dessa; agora o irmão chocólatra diz que não é hora de radicalizar, eles tão piando fino, minina… ontem, zambelli apareceu simulando choro, era toda arrogantezinha ela. vi também um youtuber chorar de desespero e um tal de beto louco acaba de simular uma delação premiada sem que ninguém lhe tenha oferecido prêmio algum. louco disse que apenas publicizou uma informação falsa cuja fonte primária era mãe zambelli, a outrora zombeteria e agora chorona… como se vê, louco não rasga dinheiro…”

“mas…voltando aquela reflexão da tempestade perfeita, gorete, os sabichões sabichavam que impeachment não depende apenas de crime, crimes não faltam, porém uma série de fatores se faz necessária: povo na rua, vontade política e jurídica, apoio midiático e o aval do mercado e do que eles chamam de elite…”

“uai, lizete, tá tudo aí, a folha e a globo já pularam do barco fascista, datena deu uma bica no presidente, weintraub passou de boneco de ventríloquo de olavo para um joão batista decapitado, o editor-executivo do valor econômico exigiu que a moçada do andar de cima faça mea culpa pela a eleição do espantalho…”

vovó pega biloca no colo e veste o casaquinho nele; não precisou de ajuste, lhe caiu como uma luva. biloca lambeu o rosto da vovó e saiu todo fagueiro pela casa, foi se olhar no espelho.

“mas uma coisa tem me incomodado, lizete, o presidente voltou a ameaçar a suprema corte, dizendo que vai tomar as medidas necessárias…”

“quais?”

“num sei, zambelli ontem falou em impeachment dos ministros de toga, que tudo dependia de formalização de um pedido feito por alguém do povo e que a coisa ficaria a cargo da casa legislativa…”

“bravata, minina. isso é desespero. isso é hemorroida coçando… esse supremo que tá aí é o mesmo que o presidente aplaudia no tempo do mensalão e do petrolão; agora ele vaia porque virou vidraça. como diria o outro, quando a maré baixa é que a gente vê quem tava tomando banho nu…”

gorete busca a forma pra untar.

“eu li ontem, lizete, que alexandre de moraes, perdigueiro empertigado, farejará a contabilidade dos youtubers odiosos, ele determinou que as redes sociais forneçam relatório sobre monetização da turma. cruzando dados, saberemos se o gato escondido deixou o rabo de fora. siga o dinheiro…”

vovó lizete, bota um ponto final na prosa: “mudando de assunto, você viu o tanto de acadêmico branco que apareceu para defender a estátua de borba gato? eu sou a favor de trocar esse borba por outro, pelo quincas borba, não o filósofo, mas o cão; e vou sugerir o biloca como modelo para a escultura…”

biloca pulou no colo da velha e a lambeu de cima a baixo, agradecido.

lá fora, um ave gritou na árvore: ah!

tia gorete deitou os pãezinhos no forno e foi até os furos do cobogó tomar um ar fresco.

biloca, de roupa nova, voltou a furunfar a almofada: fuque, fuque, fuque… tadinho.

palavra da salvação.

* Formado pela Universidade de Brasília, Lelê Teles é jornalista, roteirista e publicitário. É roteirista do programa Estação Periferia (TV Brasil) e da série De Quebrada em Quebrada (Prodav 09). Sua novela, Lagoas, foi premiada na Primeira Bienal de Cultura da UNE. Discípulo do Mestre Cafuna, prega o cafunismo, que é um lenitivo para a midiotia e cura para os midiotas.