Por Clóvis Barbosa *
No início do poema Explico Algumas Coisas, provavelmente dedicado aos poetas Rafael Alberti, Federico Garcia Lorca e Raúl Silva Castro, Pablo Neruda faz três perquirições: – Onde estão os lírios? E a metafísica coberta de papoulas? E a chuva que muitas vezes golpeava suas palavras enchendo-as de frestas e pássaros? As perguntas – duras, é verdade – não ficam sem respostas a uma tensa realidade vivida na Espanha nos idos da ditadura de Franco. O país foi totalmente destroçado, estimando-se que mais de um milhão de pessoas tenha morrido durante o período compreendido entre a guerra civil espanhola, de 1936 a 1939, e a ditadura franquista, de 1939 a 1975. Mas Neruda, no final da poesia, faz uma última indagação: Por que os seus poemas não falam dos sonhos, das folhas e dos grandes vulcões de seu país natal? Ele responde, repetindo por três vezes: Venham ver o sangue pelas ruas! Os sonhos desse grande poeta chileno não foram perdidos, mas adiados. John Lennon foi fundador de um dos maiores fenômenos da história da música, The Beatles. Quando ele se desligou da banda, o primeiro ato foi devolver a sua medalha de Membro do Império Britânico à rainha da Inglaterra, como protesto pela atuação do Reino Unido no conflito de Biafra e o seu envolvimento no apoio à guerra do Vietnã.
Uma de suas mais belas composições é Imagine, onde o sonho de um mundo melhor e mais irmanado é sublimado: Imagine não haver o paraíso, é fácil se você tentar. Nenhum inferno abaixo de nós. Acima de nós, só o céu. Imagine todas as pessoas vivendo o presente. Imagine que não há nenhum país. Não é difícil imaginar. Nenhum motivo para matar ou morrer e nem religião, também. Imagine todas as pessoas vivendo a vida em paz. Imagine que não existam posses. E eu me pergunto se você pode viver sem a necessidade de ganância ou fome, como uma irmandade dos homens. Imagine todas as pessoas partilhando todo o mundo. Você pode dizer que eu sou um sonhador, mas eu não sou o único. Espero que um dia você junte-se a nós e o mundo será como um só. O seu assassinato não matou os seus sonhos. Também os seus sonhos não foram perdidos, mas adiados. Clarice Lispector dizia que ainda bem que sempre existe outro dia. E outros sonhos. E outros risos. E outras pessoas. E outras coisas. A Bíblia assegura que Deus, criador do Paraíso no jardim do Éden, prometeu fazer da terra um paraíso de novo. De que forma? O profeta Isaías descreve como vai ser a vida no paraíso: todas as coisas ruins que existem hoje vão deixar de existir. O próprio Alcorão prevê a existência desse paraíso: os justos entre os Meus servos vão herdar a terra.
Fernando Pessoa considerava a poetisa Florbela Espanca como uma “alma sonhadora Irmã gêmea da minha”! Essa belíssima mulher, precursora do movimento feminista em Portugal, multifacetava-se ora como a “endiabrada bela”, a “Napoleão de saias” ou a “princesinha” e ora como “trouxa de farrapos”, tudo isso personificado nos seus contos e poemas marcados por uma vida inquieta, tumultuada e, sobretudo, carregada de sofrimentos. Assim foi a curta vida de Florbela Espanca, encontrada morta no dia do seu aniversário, 8 de dezembro de 1930, aos trinta e seis anos. Um de seus grandes textos encontra-se na obra “Diário do último ano”, de 1981, com prefácio de Natália Correia, onde sua alma sonhadora se revela. Ela diz: Que me importa a estima dos outros se eu tenho a minha? Que me importa a mediocridade do mundo se Eu sou Eu? Que importa o desalento da vida se há a morte? Com tantas riquezas, por que me sentir pobre? E os meus versos e a minha alma, e os meus sonhos, e os montes, e as rosas, e a canção dos sapos nas ervas úmidas, e a minha charneca alentejana, e os olivais vestidos de Gata Borralheira, e o assombro dos crepúsculos, e o murmúrio das noites… então isso não é nada? Napoleão de saias, que impérios desejas? Que mundos queres conquistar? Estás, decididamente, atacada de delírios de grandezas!
Toda vez que leio e procuro entender a alma de Florbela lembro-me de F. Scott Fitzgerald. A frase final da sua principal obra, O Grande Gatsby, diz mais ou menos o seguinte: remamos todos contra a corrente, em busca dos dias passados. Foi assim como viveu Florbela Espanca. O lamentável da sua vida foi a onda de acusações que sofreu da ditadura salazarista e da igreja católica, e que possivelmente contribuiu para o seu suicídio. Não perdoavam o seu espírito libertário, que não se adequava aos padrões impostos. Mas eles não entendiam de loucura, de poesia, de amor, de sonho e de fantasia. E, lembrando Shakespeare, “Enquanto houver um louco, um poeta e um amante haverá sonho, amor e fantasia. E enquanto houver sonho, amor e fantasia, haverá esperança”. Tabacaria é considerado um dos mais ricos poemas de Álvaro de Campos, um dos heterônimos do grande poeta lusitano Fernando Pessoa. O mundo do cotidiano com suas angústias disputa o espaço com os sonhos libertários: Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Mas seus sonhos se desfazem diante de uma realidade dura, a estupidez humana: O mundo é para quem nasce para o conquistar e não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Uma experiência marcou bastante a minha vida: ter conhecido e convivido com Darcy Ribeiro. Ele tem tudo a ver com o tema aqui abordado. Era um verdadeiro cruzado na defesa dos seus sonhos, que se transformaram em luta até a sua morte. Como era gostoso conversar com ele. Sempre deixava uma dúvida, uma frase de efeito, uma tese que a gente carregava para reflexão. Era um homem tremendamente preocupado com o Brasil. Por que o Brasil ainda não deu certo? Era a pergunta que ele fazia sempre, desde a sua chegada ao exílio, no Uruguai, em abril de 1964. Com essa ideia na cabeça começou a pensar numa forma de responder à pergunta. Trinta anos depois produziu, talvez, a sua maior obra, com o título de “O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil”, que, para ele, foi a melhor forma de influenciar as pessoas que aspiravam ajudar o Brasil a se encontrar como nação. Mas, infelizmente, até hoje sua pergunta continua sem resposta. O seu sonho de transformar o Brasil sempre encontrava barreiras na elite nacional, considerada por ele uma das mais opulentas, antissociais e conservadoras do mundo: O Brasil, último país a acabar com a escravidão, tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso.
Na manhã do dia 18 de fevereiro de 1997 soube de sua morte em Brasília. Imediatamente segui para o Rio de Janeiro, local do enterro, para lhe dar o meu último adeus. Na viagem e antes de chegar à Academia Brasileira de Letras, no Castelo, onde seu corpo foi velado, um filme passou em minha mente e passei a me lembrar das nossas conversas durante os parcos momentos de convivência. Desde 1995 que ele enfrentava um câncer nos ossos. No nosso último encontro, até tratamos sobre o assunto e eu falei de alguns amigos que tive e que também sofriam desse mal. Depois da doença, conheci um Darcy que tinha pressa em terminar alguns projetos, como a fundação que levaria o seu nome e que teria a sede na sua residência, em Copacabana. Lá estava eu, anonimamente, no Salão dos Poetas Românticos da Academia Brasileira de Letras, observando as pessoas e autoridades que tinham ido prestar a última homenagem. O escritor Dias Gomes foi quem melhor traçou o seu perfil: O Darcy era um homem feito só de amor. Ele não tinha ódio no coração. Enquanto o som de Bach contribuía para a nossa melancolia, chegava uma coroa de flores mandada por Fidel Castro com a frase “ao eterno amigo”. Era um cenário de tristeza, principalmente quando a presidente da ABL, escritora Nélida Piñon, fez o discurso de despedida.
Na hora do enterro, ainda na sede da Academia, um quiproquó foi gerado pela falta de um veículo que levaria o caixão. Foi o que bastou para ataques e xingamentos serem desferidos contra o então governador do Rio de Janeiro, Marcelo Alencar. Os ânimos foram acalmados e o enterro saiu da ABL até o Cemitério São João Batista, num trajeto de 7 km, onde no mausoléu dos acadêmicos, já à noite, foi enterrado. Darcy disse certa vez: Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu. No Brasil do mensalão e da Lava Jato, as teses de Darcy se revestem de grande atualidade, onde as ideias dominantes continuam sendo produto das elites que “asfixiam as massas mantendo-as na escuridão da ignorância”, onde a classe política tornou-se aviãozinho de uma casta de empresários que se uniu para roubar descaradamente o país. Darcy esqueceu da sua própria tese sobre a crueldade da elite. Ele viveu e nós continuamos vivendo em tempos difíceis para os sonhadores. É… O Brasil não é um lugar aconchegante para aqueles que são acostumados a sonhar.
(Escrito em 10/04/2020)
* É advogado.