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Teoria do domínio do fato

Por Clóvis Barbosa *

Claus Roxin é um dos maiores estudiosos do direito penal alemão. Para se ter ideia da sua importância como jurista, ele é detentor de nada menos que 17 títulos de doutor honoris causa conferidos por universidades no mundo inteiro. Desenvolveu uma série de teses que são hoje adotadas por várias legislações penais pelos mais diversos continentes, valendo destacar os princípios da alteridade ou transcendentalidade e o da bagatela ou insignificância. Não há um tema criminal que não tenha enriquecido com suas reflexões, daí o vasto interesse dos estudiosos pela sua obra. Quem quiser enveredar pela área do direito penal não pode deixar de conhecer o seu pensamento sobre a matéria. Mas, um dos grandes temas desenvolvidos pelo jurista alemão foi a chamada teoria do domínio do fato, bastante aplicada durante o julgamento da Ação Penal nº 470, pelo Supremo Tribunal Federal, e que se tornou popularmente conhecida como o “processo do mensalão”. Para a Suprema Corte pátria, “não obstante as condutas criminosas tenham sido executadas por ‘laranjas’ ou pessoas alheias à estrutura política do país, os detentores dos cargos públicos ligados à Presidência da República seriam também responsáveis, logo, autores dos delitos, vez que detinham o domínio do fato e, portanto, controlavam a prática delitiva, ainda que não praticassem os atos de mão própria, podendo, inclusive, determinar a cessação dos atos a qualquer momento”. A repercussão no direito brasileiro de sua aplicação foi grande e várias interpretações foram coligidas por doutrinadores, chegando ao ponto da necessidade de se exigir de Roxin uma manifestação clara sobre um tema que se tornou polêmico nas discussões acadêmicas.

Nas várias entrevistas concedidas e nos acréscimos que fez na sua obra Tratado de Direito Penal, discordou completamente da interpretação que foi dada à sua Teoria. Para ele, não é correta a noção de que só o cargo serve para indicar a autoria do crime, mas “Quem ocupa posição de comando tem que ter, de fato, emitido a ordem. E isso deve ser provado”. A teoria do domínio do fato surgiu em 1939 através do jurista Hans Welzel (1904-1977), com a sua teoria finalista adotada pela nossa legislação penal. Trata, essa teoria, dos elementos que compõem o conceito de crime – a tipicidade, a antijuricidade e a culpabilidade. Para ele, nos crimes dolosos é autor quem tem o controle final do fato. Mas, foi através da obra de Roxin, Tratado de Direito Penal, de 1963, que o tema ganhou projeção internacional e exerceu forte influência no Brasil (casos Mensalão e Lava-jato), no Peru (caso Fujimori, presidente entre 1990 e 2000) e na Argentina (processo contra a Junta Militar de Jorge Rafael Videla, que governou o país entre 1976 e 1981). Na verdade, quando de sua publicação, os olhos do jurista alemão estavam voltados para os crimes cometidos pelo nacional socialismo durante a Segunda Guerra Mundial. Para ele, aquele que, ocupando uma posição dentro de um chamado aparato organizado, dá o comando para que se execute um crime, tem de responder como autor e não só como partícipe, ao contrário do que entendia a doutrina dominante na época. Quando esteve visitando o Brasil, ainda no estertor da aplicação da teoria do domínio do fato pelo Supremo Tribunal Federal, Claus Roxin concedeu entrevista ao Jornal Folha de São Paulo.

Dentre outras considerações, firmou os seguintes entendimentos: ao ser indagado se o dever de conhecer os atos de um subordinado não implicaria em corresponsabilidade, respondeu, – A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber não basta. Essa construção [“dever de saber”] é do direito anglo-saxão e não a considero correta. No caso do Fujimori, por exemplo, foi importante ter provas de que ele controlou os sequestros e homicídios realizados. Sobre se a pressão da opinião pública – que durante o Mensalão pedia punições severas – poderia influenciar os juízes, redarguiu: – Na Alemanha temos o mesmo problema. É interessante saber que aqui também há o clamor por condenações severas, mesmo sem provas suficientes. O problema é que isso não corresponde ao direito. O juiz não tem que ficar ao lado da opinião pública. Na mesma época, Roxin também foi entrevistado na sede da OAB pelo jornal oficial da entidade e, além de ratificar o que já havia dito, prestou novos esclarecimentos, como o da origem da Teoria: – A teoria do domínio do fato não foi criada por mim, mas fui eu quem a desenvolveu em todos os seus detalhes na década de 1960, em um livro com cerca de 700 páginas. Minha motivação foram os crimes cometidos à época do nacional-socialismo. A jurisprudência alemã costumava condenar como partícipes os que haviam cometido delitos pelas próprias mãos, por exemplo, o disparo contra judeus, enquanto sempre achei que, ao praticar um delito diretamente, o indivíduo deveria ser responsabilizado como autor. Mais adiante, ele complementa:

– E quem ocupa uma posição dentro de um aparato organizado de poder e dá o comando para que se execute a ação criminosa também deve responder como autor, e não como mero partícipe, como rezava a doutrina da época. De início, a jurisprudência alemã ignorou a teoria, que, no entanto, foi cada vez mais aceita pela literatura jurídica. Ao longo do tempo, grandes êxitos foram obtidos, sobretudo na América do Sul, onde a teoria foi aplicada com sucesso no processo contra a junta militar argentina do governo Rafael Videla, considerando seus integrantes autores, assim como na responsabilização do ex-presidente peruano Alberto Fujimori por diversos crimes cometidos durante seu governo. Posteriormente, o Bundesgerichtshof (o equivalente alemão de nosso Superior Tribunal de Justiça, o STJ) também adotou a teoria para julgar os casos de crimes na Alemanha Oriental, especialmente as ordens para disparar contra aqueles que tentassem fugir para a Alemanha Ocidental atravessando a fronteira entre os dois países. A teoria também foi adotada pelo Tribunal Penal Internacional e consta em seu estatuto. Outro aspecto importante da teoria é o âmbito de sua aplicação, limitando-se apenas aos delitos dolosos. E é lógico esse raciocínio, pois somente nos eventos dolosos se pode falar em domínio final do fato típico, o que não ocorre nos crimes culposos, como é sabido. Assim pensa a doutrina alemã, ou seja, nos delitos dolosos utiliza-se do conceito restritivo de autor e nos culposos, do conceito unitário de autor que não distingue autoria e participação. E se desta forma não fosse, estar-se-ia adotando a responsabilidade penal objetiva, já proscrita do direito penal moderno.

Portanto, na voz do seu criador, não bastam meros indícios para aplicação da teoria do domínio de fato. É preciso provar de forma incontestável a participação daquele que tem o poder de mando. É princípio – na órbita do direito penal – que as somas dos indícios não se configura em prova provada. Por menor que seja a dúvida sobre a culpabilidade de alguém, há de se aplicar o preceito latino do in dubio pro reu, ou seja, a dúvida sobre a culpabilidade do acusado – por menor que seja – é motivo idôneo para determinar sua absolvição. O resto é conversa fiada de quem não perambula pelos

* É advogado, ex-presidente da seccional da OAB e conselheiro aposentado do Tribunal de Contas de Sergipe.

(Artigo publicado originalmente no Jornal da Cidade)

 

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