Por Afonso Nascimento *
Esse artigo é pura especulação, mas está muito perto da realidade. Surgiu das memórias de pessoas que pertenceram ao antigo PCB e que depuseram na Comissão Estadual da Verdade “Paulo Barbosa” (CEV), instaurada em Sergipe, em 2015, no governo de Jackson Barreto de Lima. Vou começar com uma afirmação conhecida de todos que se interessam pelo assunto. Durante o regime autoritário, vários membros do PCB sergipano passaram alguma temporada em Moscou, capital da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). De memória, posso mencionar os nomes de Jackson de Sá Figueiredo (“Tetéia”), Marcélio Bonfim, Laura Marques e Wellington Mangueira. Não cabe aqui discutir as circunstâncias que levaram esses sergipanos a se afastarem temporariamente do Brasil e a ele voltaram como quadros de elite.
Um fato sobre o qual não pode haver dúvida é que eles, na capital moscovita, não frequentaram a Universidade Patrício Lumumba, uma universidade como qualquer instituição federal de ensino que prepara para estudantes para profissões como a Engenharia, a Medicina, o Direito, etc. Essa universidade era buscada por muitos estudantes do chamado Terceiro Mundo, oriundos, por exemplo, da América Latina, da África e de outras regiões. Muitas das nações que surgiram com a descolonização ocorrida com o fim da II Guerra Mundial mandaram para o frio de Moscou pessoas que se tornaram quadros de médicos etc. – como foi o caso de ex-colônias portuguesas na África que se aproximaram politicamente da URSS.
Não foi para essa universidade que foram “estudar” os sergipanos do PCB. De fato, a escola por eles frequentada ficava a quatro quilômetros de Moscou. No currículo destinado a esses estudantes não podiam ser encontradas disciplinas como Física, Química, Matemática e outras mais. Bem diferentemente, eles estudavam assuntos como liderança, funcionamento de organizações, doutrina leninista e… Faço uma pausa aqui e retomo uma parte do depoimento feito por uma antiga comunista, casada com comunista, que afirmou ter praticado tiro no seu treinamento geral. E disse – está tudo nas gravações – que seu desempenho no tiro-ao-alvo foi razoável! Uma pergunta inescapável então se coloca: esses cursos feitos na periferia de Moscou incluíam ou não incluíam uma parte de treinamento militar?
Retomando essa discussão mais tarde, com os trabalhos concluídos da CEV, outro comunista afirmou categoricamente, em comunicação telefônica comigo, que esses seus “estudos” excluíam qualquer treinamento militar. Aqui estão, portanto, duas opiniões divergentes. Se o leitor quiser a minha opinião, eu tendo a pensar, baseado apenas na lógica desses treinamentos ideológica e politicamente orientados, que me aproximo da narrativa da ativista mencionada acima e não no segundo relato neste parágrafo. Mas pode ser que assim não tenha acontecido.
O segundo ponto que gostaria de levantar e que tem tudo a ver com o primeiro é o problema do setor militar do PCB. Afinal, existiu ou não o assim denominado “setormil” em Sergipe – excluída a tentativa de golpe em 1935, pejorativamente denominada de “Intentona Comunista”? Voltando mais uma vez aos depoimentos da CEV, informalmente, em conversa não gravada, uma liderança comunista de escol falou que existiu o setor militar em Sergipe e que, claro, não podia declinar nomes. Eis aí um assunto delicado! Tratar do setor militar do PCB significa relacionar nomes de dirigentes partidários a suas conexões entre militares, o que, por sua vez, leva a querer saber os nomes dos militares.
Não é desconhecido de quem se interessa pelo assunto que houve repressão dos que construíram o regime militar contra colegas de farda. Diferentemente do momento que o Brasil vive hoje, havia mais de um tipo de politização de militares ocorrida à esquerda e à direita, entre nacionalistas e entreguistas, etc. E alguns deles chegaram mesmo a pegar em armas contra a ditadura militar. Mas o problema continua, mesmo porque muitos desses militares que poderiam ser os contatos dos comunistas do PCB estão mortos, sendo de novo isso delicado, tanto para os quartéis, como para as suas famílias. Para a gente que usa farda e coturno, ser conexão de comunista equivale a chamar alguém de traidor ou algo assim.
Ainda durante os depoimentos desses ativistas políticos à CEV, muitos disseram que sofreram torturas por parte de militares. Eles têm nossa solidariedade, pois a tortura sempre é errada. Nessas ocasiões devem ter sido inquiridos sobre os cursos feitos em Moscou e – não será nenhuma surpresa – devem ter sido perguntados sobre um eventual treinamento militar. Se “na tortura toda a carne se trai”, parodiando o artista paraibano, terão dado alguma resposta. A menos que eu esteja errado, os processos judiciais que pude consultar não contêm essas informações. De igual forma, também não deixaram de ser perguntados sobre o tal setor militar do PCB em Sergipe. Um nome de uma pessoa que me veio à mente quando se falava ou fala desse “setormil” é o de um certo major reformado do Exército, conhecido comunista preso em mais de uma ocasião e cujo sítio era usado com frequência para reuniões de seus camaradas.
Eu não terminarei esse pequeno texto sem lembrar o que foi dito em depoimentos na mesma comissão que, logo após o golpe militar de 1964, um grupo de comunistas pensou em dinamitar uma estação de energia elétrica da Usina de Paulo Afonso e, no meio do caminho, desistiram de tamanha loucura. Que bom que não o fizeram! Ainda em um dos tais depoimentos, velhos ativistas comunistas afirmaram que alguns de seus colegas receberam treinamento militar no interior da Bahia, perto de Feira de Santana. Isso é uma contradição política séria com a qual comunistas setentões parecem não ter sabido lidar. Com efeito, para uma organização clandestina que se negou todo o tempo a fazer qualquer opção pela luta armada contra o regime militar, esse treinamento baiano e um possível treinamento moscovita são pedras nos sapatos de ativistas ditos reformistas que permanecerão sem resposta. Talvez seja melhor assim.
* É professor de Direito da Universidade Federal de Sergipe