Por Marcos Cardoso*
A duas semanas do 17 de março e dos 167 anos da elevação do povoado de Santo Antônio do Aracaju à categoria de capital de Sergipe, os pensamentos voltam-se para os festejos e para as lembranças. E quem é de lembrar, lembra, pesquisa, compila informações, verbaliza, escreve. Fatos e personagens históricos são reanimados. Nem todos os episódios são felizes e nem todos os personagens são bem-vindos à lembrança. Alguns sequer conheceram esta cidade e são também pouco conhecidos por aqui, mas estão, como uma tatuagem indesejada, marcados para sempre na memória aracajuana.
Um desses personagens malditos chamava-se Harro Schacht, um capitão-de-corveta alemão que morreu jovem, aos 35 anos, exatamente há 79 anos, no dia 9 de janeiro de 1943. Na sua breve existência, talvez tivesse lido a palavra Aracaju em algum mapa náutico, não mais do que isso. No entanto, seu nome é de relevância no episódio certamente mais dramático da história do povo desta latitude. Foi ele o responsável pelo bombardeamento submarino de vários dos 32 navios da Marinha Mercante do Brasil que sucumbiram no Atlântico e dos 43 navios de bandeira estrangeira afundados na costa brasileira durante a Segunda Guerra Mundial.
Também fora o responsável pelo afundamento de três dos quatro navios de carga e passageiros na costa sergipana, o Baependi, o Araraquara e o Aníbal Benévolo, episódio que obrigou Getúlio Vargas a abandonar o suspeito estado de neutralidade e romper relações com os países do Eixo. Quase mil brasileiros morreram em consequência dos torpedeamentos, 604 nos barcos afundados ao largo de Sergipe.
Harro Schacht, um legítimo ariano, louro, face macilenta, orelhas de abano e lábios finos, desempenhava com fidelidade de rottweiler a missão que fora determinada pelo próprio Führer. No comando do submarino U-507, integrando uma flotilha de 10 unidades submergíveis que deveriam vigiar os portos de Santos, Rio de Janeiro, Salvador e Recife, ele ficou responsável pelo quadrado marítimo entre o litoral norte da Bahia e Sergipe. A ordem era torpedear todos os navios que encontrasse, fossem bélicos ou não, estivessem armados ou não.
Alvo fácil
O relato que segue, sobre os episódios de agosto de 1942, foi escrito pelo jornalista Mauro Santayana, quando ainda repórter do Jornal do Brasil, em 5 de maio de 1971.
“No dia 15 de agosto, no fim da tarde, o oficial-observador do U-507 localizou, pelo periscópio, um barco de 6 mil toneladas, que se deslocava a nove milhas, no curso de 35 graus. O submarino iniciou a perseguição, aguardando o momento propício para o ataque.
Pouco depois da meia-noite, quando o relógio de bordo marcava 00h12 do dia 16, Schacht deu a ordem de fogo. O submarino se encontrava à superfície, o alvo era fácil. O timoneiro do Baependi conduzia sem preocupação o navio, cujas luzes, obedecendo às regras de neutralidade, estavam totalmente acesas. O torpedo atingiu o barco em pleno centro, na linha de flutuação.
O Comando da Marinha de Guerra alemã recomendou a Schacht permanecer na área. Através da interceptação de mensagens telegráficas e de informações do Serviço Secreto, sabia da existência de outros navios brasileiros em seu quadro de patrulhamento.
Menos de duas horas depois, o U-507 avistava outras luzes: as do Araraquara, de 5 mil toneladas, que navegava a 14 milhas, no curso de 27 graus. O ataque foi novamente sem dificuldades. Na manhã seguinte, poucos quilômetros adiante, o submarino torpedeava o Aníbal Benévolo.”
Entre tripulantes e passageiros, incluindo mulheres, idosos e crianças, o Baependi transportava 323 seres humanos, sendo que apenas 28 sobreviveram. O Araraquara transportava 146 almas e somente 15 escaparam com vida. E o Aníbal Benévolo viajava com 154 pessoas a bordo, das quais só quatro sobreviveram. Os muitos corpos e os poucos sobreviventes foram dar nas areias das praias de Aracaju até Mangue Seco, na Bahia.
Post-mortem
Schacht foi convocado a retornar à base, quando pôde desfrutar pela última vez do contato com a família, logo recebendo nova missão nas costas brasileiras. No dia 8 de janeiro de 1943, torpedeava o navio britânico Yorkwood, na altura das Guianas. E, no dia seguinte, na altura do Pará, um hidroavião Catalina americano da esquadrilha baseada no Brasil liquidava o U-507 e sua tripulação com bombas de profundidade. “Schacht foi promovido post-mortem e sua viúva recebeu, em seu nome, a Ritterkreuz des Eisernem Kreuzes. A condecoração e quase tudo que era de Schacht desapareceu. Sua casa, em Hamburgo, foi totalmente destruída durante um bombardeio”, contou Santayana.
Naquele mesmo ano, o almirantado alemão enviou outra força-tarefa de submarinos médios acompanhados de um submarino de reabastecimento para apoiá-los. Do dia 18 de fevereiro até outubro de 1943, foram torpedeados e afundados mais oito navios mercantes brasileiros. Dentre estes, o Bagé, ao largo de Sergipe, no dia 31 de julho, atingido por torpedo do submarino U-158 comandado pelo capitão alemão August Maus. O Bagé transportava 134 pessoas: 28 morreram. Só em julho de 1944, o Brasil ingressou efetivamente na guerra, enviando a Força Expedicionária Brasileira e o 1º Grupo de Caça da FAB à Itália. A história de Aracaju também passa pela campanha nacional nas terras de Benito Mussolini, pois heróis aracajuanos combateram por lá. Mas essa é outra história.
(Artigo publicado originalmente no Jornal da Cidade em 29 e 30/01/2005)
* É jornalista e escritor. Foi diretor de Redação do Jornal da Cidade, secretário de Comunicação da Prefeitura de Aracaju, diretor de Comunicação do Tribunal de Contas de Sergipe e é servidor de carreira da UFS. É autor dos livros “Sempre aos Domingos – Antologia de textos jornalísticos” e do romance “O Anofelino Solerte”.