O Brasil está vivendo neste ano algo inédito: desde que os festejos carnavalescos começaram no país — o que, segundo pesquisadores, ocorreu à época da chegada dos portugueses, no século 16 —, eles nunca deixaram de ser celebrados no período que antecede a Quaresma, em fevereiro ou no começo de março. Porém, devido à pandemia de covid-19, os governos estaduais e as prefeituras proibiram qualquer evento que promova aglomeração de pessoas.
Não se trata de uma decisão simples. o Risco da proibição é que a estratégia pode não dar certo. É o que alerta a história. Afinal, as duas tentativas oficiais de adiar a festa de Momo no Brasil fracassaram. A primeira ocorreu também por questões sanitárias, em 1892, quando o país lidava com uma série de doenças, como a febre-amarela. A segunda se deu em 1912, devido à morte do Barão do Rio Branco, então ministro do Exterior e tido como herói nacional.
Carnaval transferido para julho
No fim do século 19, buscando evitar a aglomeração de pessoas no calor de fevereiro, os governantes decidiram transferir os festejos para junho, no inverno. “Adiaram, por decreto, para o último fim de semana de junho, que inclusive coincide com as festas de São João. O que aconteceu? Chegou o carnaval, foi todo mundo para a rua, mesmo que houvesse o decreto. A Prefeitura (do Rio de Janeiro, capital federal à época) até tentou fazer controles policiais, fechando as lojas que vendiam produtos temáticos, proibindo salões onde ocorriam os bailes de abrirem, mas nada disso adiantou”, detalha Leonardo Bruno, pesquisador-orientador do Observatório de Carnaval do Museu Nacional.
Na outra tentativa, o motivo era o luto pela morte do Barão do Rio Branco, que aconteceu a uma semana da festa. “O povo sofreu muito e decretou-se o adiamento para dois meses depois, em abril. Em princípio, parecia algo sensato, mas, quando chegou o sábado de carnaval, o povo foi para a rua afogar as mágoas e acabou o luto. Efetivamente, aconteceram dois eventos. Os registros históricos trazem até uma marchinha que o povo cantava na rua dizendo que, se o barão morreu e a gente teve duas festas, imagina quando morrer o general”, conta Bruno.
“Nos dois casos, não adiantou nada. A folia aconteceu na data normal e na data transferida. Foram duas transferências tentadas que não tiveram sucesso. Ou foram um grande sucesso e as pessoas tiveram dois carnavais”, brinca Felipe Ferreira, professor do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e criador do Centro de Referência do Carnaval.
As guerras e a gripe espanhola
As duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945) também não impediram a realização do carnaval no Brasil, a despeito de tentativas das autoridades. De acordo com o professor Paulo Miguez, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o país teve participação pequena no primeiro conflito, enviando poucos militares à Europa apenas no fim dele, ou seja, após a folia de 1918. À época, chegou-se a discutir a realização dos festejos, mas eles ocorreram normalmente. Na Segunda Guerra, contudo, o Brasil teve maior participação. “Oficialmente, tudo foi feito para impedir. Recursos públicos foram interditados, mas a festa aconteceu mesmo com os pracinhas na Itália. As muitas proibições acabaram dribladas”, explica.
Além do fim da Primeira Guerra, 1918 ficou marcado pela gripe espanhola, até hoje a mais violenta pandemia da história, que deixou de 20 a 40 milhões de mortos — mais até do que a Primeira Guerra, que fez 15 milhões de vítimas. No Brasil, segundo o Atlas Histórico da Fundação Getulio Vargas (FGV), foram cerca de 35 mil óbitos. Até mesmo o presidente eleito, Rodrigues Alves, morreu vítima da doença antes de tomar posse. É fácil presumir que, diante da tragédia, o carnaval não fosse realizado. Mas aconteceu exatamente o contrário.
O maior Carnaval da história
A festa de 1919 é tida, até hoje, como a maior de todos os tempos. “A gripe chegou, arrasou, matou milhares, mas em determinado momento ela foi embora, por volta de outubro, novembro. Isso fez com que o evento do ano seguinte, segundo todos os relatos, tenha sido o mais louco de todos os tempos, dos mais irreverentes que se tem notícia. O povo foi para a rua com a necessidade de celebrar o fim daquela coisa terrível. Além disso, depois de uma tragédia como essas, havia o pensamento de que poderia ser o último dos carnavais”, narra Miguez.
As proporções da maior folia de todos os tempos podem ser tomadas com base nos relatos do escritor Nelson Rodrigues. Apesar de ter apenas 6 anos, ele gravou na memória as cenas daquele ano e, posteriormente, as descreveu em um artigo para o jornal Correio da Manhã — compilado no livro Memórias: A menina sem estrela:
“Começou o carnaval e, de repente, da noite para o dia, usos, costumes e pudores tornaram-se antigos, obsoletos, espectrais. As pessoas usavam a mesma cara, o mesmo feitio de nariz, o mesmo chapéu, a mesma bengala (naquele tempo, ainda se lavava a honra a bengaladas). Mas algo mudara. Sim, toda a nossa íntima estrutura fora tocada, alterada e, eu diria mesmo, substituída. Éramos outros seres e que nem bem conheciam as próprias potencialidades. Cabe então a pergunta: — e por quê? Eu diria que era a morte, sim, a morte que desfigurava a cidade e a tornava irreconhecível. A espanhola trouxera no ventre costumes jamais sonhados. E, então, o sujeito passou a fazer coisas, a pensar coisas, a sentir coisas inéditas e, mesmo, demoníacas.”
Sem condições
Diferentemente do que ocorreu com a gripe espanhola, que ficou menos de três meses no Brasil, é difícil prever quando a covid-19 — declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março — deixará de ser uma ameaça à população brasileira. Portanto, é consenso entre especialistas e autoridades que, nesse cenário, não havia condições de se realizar o carnaval deste ano.
Pesquisadores alertam que, dado o histórico da festa no Brasil e os vastos exemplos de desrespeito ao distanciamento social observados desde o início da pandemia, as autoridades devem levar em conta a possibilidade de manifestações espontâneas. “Pode haver uma desmobilização dos festejos formais, dos blocos tradicionais, do desfile das escolas de samba… Essa festa institucionalizada certamente não ocorrerá, mas acho pouco provável que não haja gente na rua. As praias e os bares lotados pelo Brasil afora são um ótimo exemplo disso”, resume Leonardo Bruno.
Os outros especialistas endossam a opinião do pesquisador do Museu Nacional. “É muito provável que grupos de amigos, ou até mesmo pessoas sozinhas, iniciem um tipo de manifestação carnavalesca e, naturalmente, aquilo vire um bloco de proporção maior”, pontua a pesquisadora Rita Fernandes, autora do livro Meu bloco na rua. “É tudo muito inédito, são muitas variáveis. A única coisa que se tem certeza é que não dá para ser irresponsável e nós, que fazemos isso de forma organizada, motivarmos um carnaval em um momento em que ele não pode acontecer”, ressalta Fernandes.
Carnaval existe desde a colonização
Há relatos de celebrações carnavalescas no Brasil desde a época da colonização. A origem do carnaval como conhecemos, contudo, remonta ao século 17, com a chegada do entrudo ao país. “O entrudo é uma festa trazida da Europa, em que as pessoas jogavam água, limão e água de cheiro umas nas outras. Uma brincadeira quase infantil, mas que, conforme foi adquirindo as características da cidade e se espalhando não só entre os nobres, foi ganhando outras facetas. Chega um momento em que as brincadeiras ficam violentíssimas, as pessoas passam a jogar urina, farinha e ovo podre, e a nobreza não quis mais participar”, relata Leonardo Bruno.
Com essa divisão de classes, tão marcante no país ao longo da história, é que a folia de Momo se desdobrou nas mais diversas manifestações observadas hoje. “De 1800 para 1900, com a República instalada, o Brasil queria se enxergar como a Paris dos trópicos. Então capital federal, o Rio fez uma série de mudanças urbanísticas para se configurar como uma cidade à moda europeia. E a festa sofre influências daí. A nobreza começa a importar determinados eventos da Europa, como os bailes de máscaras e os desfiles da alta sociedade em carros. Mas o povo também estava criando suas formas de festejos, como os blocos, que eram procissões religiosas, com cânticos típicos. E nos anos 20, efetivamente, surgem as primeiras escolas de samba”, acrescenta o pesquisador.
Texto do Correio Braziliense