Por Anderson da Silva Almeida (UFAL), Célia Costa Cardoso (UFS) e José Vieira da Cruz ( UFS) *
Sessenta anos depois da deflagração do golpe civil-militar de 1964, os desdobramentos, consequências e disputas do passado e do presente persistem com significados profundos para a sociedade e as instituições políticas brasileiras. As marcas da referida inflexão política interrompeu uma experiência democrática nacional-desenvolvimentista, reformista e populista, deferida pelo cajado de um golpe de estado conferido pelas forças militares e apoiada por setores da direita, empresários e religiosos conservadores.
A efetivação do golpe resultou em um longo período de ditadura civil-militar, de 1964 a 1985, com cicatrizes vivenciadas até os dias atuais. De forma que seus resquícios, desdobramentos e incompreensões, rondam como espectros a política, o cotidiano e os horizontes de expectativas do atual presente histórico brasileiro. Neste sentido, quase três décadas depois do fim da ditadura – passado os períodos de redemocratização política, aprovação de uma nova Constituição e de realização de nove eleições diretas para a Presidência da República –, a democracia ainda é um horizonte de expectativa a ser consolidada, defendida e mais bem conhecida.
A respeito disso, é necessário, cada vez mais, investir nos estudos interdisciplinares, transversais, críticos e que abarquem os diferentes desdobramentos e inter-relações de acontecimentos, narrativas e temporalidades históricas ocorridas em diferentes estados e regiões do país.
Neste sentido, a temática acolhida pelo dossiê “O Golpe de 1964+60: democracia, ditaduras e direitos humanos” – publicado pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, nº 54, volume 1, disponível: https://periodicos.ufs.br/rihgse/issue/view/1349 – , é um exercício acadêmico importante para reunir registros, análises, estudos e discussões centradas na valorização de memórias, narrativas e acontecimentos associadas ao referido Golpe e a seus desdobramentos. Um compromisso acadêmico, ético e cidadão, ainda mais imprescindível, frente ao atual contexto no qual o governo federal evita celebrações, atos e/ou (des)comemorações críticas do mencionado acontecimento político e histórico.
As razões para esta postura oficial vem se acumulando desde o desenrolar dos resultados da disputada e polarizada eleição presidencial de 2022, do amontoado de pessoas que permaneceram meses acampadas nas proximidades de quartéis, dos bloqueios realizados em rodovias federais por parte de inconformados com o resultado eleitoral, dos falsos questionamentos contra os resultados das urnas eletrônicas, da tentativa fracassada de Golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023, do esforço político do atual governo de manter as relações republicanas com as forças armadas e do recente publicização do relatório da Polícia Federal sobre atos golpistas, milicias digitais e dos malogrados planos de assassinato dos candidatos eleitos para presidência e vice-presidência e de um ministro do Supremo Tribunal Eleitoral.
Frente a este cenário, não é, como todos sabem, tarefa fácil estabelecer um contraponto democrático, respeitoso e civilizado com aqueles(as) que interpretam, defendem e apoiam máculas associadas a golpes, ditaduras e seus desdobramentos: cassações, sequestros, prisões, torturas e demais violências, violações e desrespeito aos direitos humanos. Apesar disso, é dever de cada cidadão, historiador ou não, avaliar a história de sua sociedade e os caminhos pelos quais ela tem percorrido para alcançar a efetivação de princípios universais almejados pela modernidade contemporânea: justiça social, liberdade de expressão e democracia.
Desta forma, independentemente de como os atos autoritários são conceituados – golpe, ditadura ou movimento antidemocrático, bem como, independente da classificação de sua natureza: civil, militar, empresarial-militar ou civil-militar –, o resultado deles decorridos sempre culminam em ofuscamentos, retrocessos, rupturas e descontinuidades do processo de civilidade e de respeito aos direitos universais da pessoa humana.
No caso do golpe civil-militar de 1964, posição compartilhada pelos autores deste dossiê, as manifestações contaram com o apoio de setores conservadores de igrejas, imprensa, empresas e partidos políticos de direita, inclusive com mobilizações de rua em várias cidades do país, dentre elas cidades de Sergipe. O apoio a esse acontecimento e processo antidemocrático, não tardou a se voltar contra parte desses setores da sociedade civil que, a princípio, haviam apoiado o golpe e, na sequência, a ditadura.
Em torno deste debate, sessenta anos depois, este dossiê, publicada pela centenária Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, o mais longevo periódico em atividade nas terras que já pertenceram ao cacique Serigy, reúne pesquisas, memórias e documentos de como este passado próximo, presente e sensível tem sido abordado, ressignificado e estudado.
Em torno dele, o primeiro artigo, A vida pelo avesso: investigação e “infiltração” no setor público, o caso sergipano de Nilton Pedro da Silva, de autoria de Alexandre Firmo, trata das perseguições políticas sofridas pelo ex-sargento, cassado pelo AI-1. A época desta investigação, o pernambucano Nilton Pedro da Silva era servidor público de Sergipe e docente pernambucano da Universidade Federal de Sergipe. Ele foi investigado durante o período de março de 1969 até agosto de 1970 pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) e teve sua vida virada ao “avesso”. Durante este período de investigação ele se encontrava prestando serviço junto ao governo estadual de Paulo Barreto de Menezes (1971-1975). O referido mandatário, por sua vez, demonstrava interesse em cooperar e em cumprir as recomendações do Ministério da Justiça, então comandado por Alfredo Buzaid, de ampliar as investigações sobre Nilton no estado. No entanto, o reconhecimento de sua capacidade técnica como economista, tendo atuado na condição de responsável pelo expediente da Secretaria da Fazenda do estado, foi reconhecida pelo Secretário Executivo do Conselho do Desenvolvimento Econômico de Sergipe (CONDESE), Jacó Charcot Pereira Rios. Embora esse prestígio fosse essencial para a defesa da acusação de ser comunista, na prática este reconhecimento não surtiu efeito, pois o professor não conseguiu se livrar das acusações e acabou sendo demitido de suas funções na administração pública federal e estadual.
O segundo artigo, Desvendando o enigma vermelho: Operação Cajueiro, PCB e crise partidária em Sergipe (1976-1980), de autoria de Ronaldo de Jesus Nunes, discute uma operação militar, ocorrida no estado de Sergipe em 1976, denominada de “Operação Cajueiro”, planejada e executada pelo Exército para perseguir, prender e usar o método da tortura na coleta de informações. Este acontecimento não foi um fato isolado no Brasil e resultou no confinamento de cerca de mais de vinte pessoas em Aracaju, oriundas em sua maioria da militância do PCB. A ação repressiva, de âmbito nacional, compôs o projeto do governo Ernesto Geisel de promover a “distensão lenta, gradual e segura”, com o intuito de destruir a força política do PCB, um partido tradicional da esquerda brasileira que resistia ao poder discricionário, na defesa da mobilização das massas para derrubar a ditadura. A pesquisa buscou também, compreender a trajetória de cada personagem, a dispersão do PCB no estado e as migrações partidárias. Assim, alguns dos que resistiram à prisão e à tortura empenharam-se na construção de um novo projeto político, após a Anistia e da nova lei partidária de 1979 que acabou com o bipartidarismo.
O terceiro artigo aprovado por este dossiê, A Diocese de Propriá-SE e o Golpe Militar de 1964: dilemas entre a modernização conservadora e a defesa pela justiça social, de autoria de Osnar Gomes dos Santos, apresenta um estudo acerca das posições assumidas pela diocese de Propriá no estado de Sergipe durante o processo do golpe de 1964. A pertinência deste trabalho se explica em razão da influência política exercida pelos membros dessa diocese, não apenas na consumação do apoio ao golpe no Estado, mas também nas posições tomadas que resultaram em sua consolidação sob a forma de uma ditadura civil-militar. Posições que foram, gradativamente, substituindo a leniência inicial pela oposição direta e radical face ao regime. Este artigo, em termos metodológicos, analisa notícias de jornais, entrevistas publicadas, cartas e outros registros eclesiásticos e civis.
O quarto artigo, Jaime Wright: O reverendo dos Direitos Humanos durante a Ditadura Militar Brasileira (1964-1985), de autoria de Felipe Moreira Barboza Duccini, analisa a trajetória de vida do reverendo presbiteriano Jaime Wright (1927-1999), dentro do contexto político, social e religioso da ditadura militar brasileira (1964-1985). O reverendo presbiteriano engajou-se fortemente na causa dos direitos humanos durante a ditadura, foi fundador da Coordenadoria Ecumênica de Serviços (CESE), do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul (CLAMOR) e coordenou o desenvolvimento do projeto Brasil Nunca Mais (BNM). Jaime Wright foi uma das lideranças do ecumenismo protestante, tendo trabalhado quase uma década na Arquidiocese de São Paulo, ao lado do arcebispo D. Paulo Evaristo Arns.
O quinto, Agentes da sétima arte: descortinamento histórico do Clube de Cinema de Sergipe diante do Golpe de 1964, de Onesino Elias Miranda Neto, visa construir um breve referencial historiográfico acerca das ações do Clube de Cinema de Sergipe (CCS) – durante o período da ditadura militar em Sergipe, demonstrando sua formação e atividades desde seu nascimento até os idos dos anos de chumbo. Busca-se refletir sobre as condições adversas que as manifestações culturais tinham em Aracaju e diante disso como os membros cineclubistas promoviam atos que refletiam a resistência contra o governo autoritário.
O sexto artigo, O Golpe Militar na Música Sergipana (1964-1988), de autoria da pesquisadora Tereza Cristina Cerqueira da Graça, analisa a atuação do aparelho censório deferido pela Ditadura Militar contra a música popular produzida em Sergipe, utilizando como fonte os documentos da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP/DPF/MJ) constantes nos acervos do Arquivo Público do Estado de Sergipe (APES) e do Arquivo Nacional (AN). No curso desta empreitada a autora dialogou com os estudos de Moby (1994) e Napolitano (2010) para fundamentar sua interpretação acerca dos significados do que veio a ser denominado de Música Popular Brasileira (MPB), como também de alguns estudos sobre as artes sergipanas do período. O ceifamento precoce e autoritário desta produção teve como uma de suas consequências impedir que composições, interpretações e melodias inéditas, originais e com traços socioculturais, independentemente de sua conotação política e/ou ideológica, chegassem a um público mais amplo.
No sétimo artigo, Os combates nas trevas de Milton Coelho: o petroleiro tornado cego pela Ditadura Militar, de autoria de José Afonso Nascimento – professor emérito da UFS, pesquisador do campo do direito, integrante da Comissão Estadual da Verdade “Paulo Barbosa de Araújo” e colunista da imprensa local –, contribui duplamente tecendo uma reflexão acerca da trajetória de combates e de resistências do ex-petroleiro e militante do PCB Milton Coelho. O artigo também homenageia a trajetória deste ativista político, recentemente falecido, que foi sequestrado, torturado e perdeu a visão por conta da repressão militar aos comunistas brasileiros. Em Sergipe, os braços desta repressão, ocorrida nos idos de 1976, foi denominada “Operação Cajueiro” e teve em Milton Coelho um dos maiores símbolos de resistência.
A reunião destes textos em mais um dossiê da Revista do IHGSE apresentam três significados. O primeiro, a exemplo de outras edições, consolida a missão do periódico de publicar, difundir e estimular estudos sobre a sociedade, cultura e história. O segundo é o de abordar discussões de um passado próximo, sensível e que tem transpassado o presente histórico brasileiro nas últimas seis décadas.
O terceiro significado, faz jus através deste dossiê, ao papel do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE) enquanto espaço de reuniões, estudos e mobilizações de movimentos políticos, sociais e culturais contra a ditadura. E, por fim, homenageia a postura de alguns dos intelectuais mais ativos – José Silvério Leite Fontes, Maria Thetis Nunes, José Ibarê Costa Dantas, Beatriz Góes Dantas e Aglaé D’Ávila Fontes –, que em razão de suas posturas independentes, críticas e resilientes, foram monitorados, vigiados e fichados pelos órgãos da comunidade de segurança e informações.
* São, professores da Universidade Federal de Sergipe e da Universidade Federal de Alagoas.