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Uma senhora quarentena

Por Manoel Moacir Costa Macêdo *

Estou há um ano em quarentena da Covid-19, nos grupos do risco e do medo do coronavírus. Chegou rápido. Disseram que demoraria a desembarcar por aqui. Gostava de frio, aqui é quente. Devorava os ricos, aqui os pobres. Preferia os alvos, aqui os afrodescendentes. Não surgiu na terra da Aids e Ebola, a “mãe África”, foi globalizado pelos endinheirados em turismo no Velho Mundo. A pobreza não é globalizada, mas as finanças e as commodities. Onde passou, não tinha um deus para dizer que é seu. Aqui “Deus é brasileiro”. Prosperou na “terra de santa cruz e no coração do mundo, pátria do evangelho”. Não tem uma identidade de vida. É uma molécula. Apareceu na China, império fragmentado no passado, poderoso no presente. Ele é do mundo. Não tem alma. Não grudou na teoria da conspiração, nem na politização do sofrimento.

Reconhecido pela tosse, febre, restrições ao paladar e falta de oxigênio. Um gás livre e gratuito na natureza. Requer os pulmões sadios. Faz o que mais gosta: asfixiar e matar. Não encontrou resistência de leitos, UTIs, equipamentos de proteção individual, profissionais treinados, respiradores, remédios e tudo mais que reclama a vida. Na primeira onda, distinguia ilustrado de abandonado, seguiu a rota pavimentada da desigualdade. Atualizou o “exército industrial de reserva” na esteira da produção. Sai um entra outro, tal qual os “tempos modernos” de Charles Chaplin e a escravidão negra. Nas ondas seguintes, às genuinamente nacionais, contaminou e matou com maior velocidade.  Atacou indistintamente de endereços, posses e idades. Tornou-se democrático. Funerais são iguais para a pós-materialidade.

Resignado na quarentena. Acomodado na amorfa classe média. Fartura, idade e peso. A idade é inexorável, o peso é opção. Não incomoda, exceto quando chamado de “gordo”. Cabelos brancos e bigodudo, mas somente incomoda o “gordo”. Acato a recomendação burocrática: “não saia de casa, a situação é grave, a contaminação é comunitária e as atuais cepas são mais contaminantes e letais”. Não tem remédio, não tem enfermaria e não tem UTI. Quatrocentos dias em isolamento social. Não tenho solidão, mas individualidade. Não quero mais sair. Ficarei onde estou, até a vacina chegar. Não tenho carências. Alimento os colóquios e conversas virtuais. Consumo os canais de televisão fechados e pagos. Energia, água, telefone, gás e internet intermitentes. Do alto da verticalidade vejo ruas, praças e avenidas limpas e desinfetadas. Garis não tem quarentena.

Supermercados abastecidos. Caminhoneiros e produtores rurais não tem quarentena. Bancários não tem quarentena. Banqueiros e acionistas, sim. Ônibus, metrô e trem transportam trabalhadores, eles não têm quarentena. Porteiros e zeladores não tem quarentena. Inquilinos e proprietários sim. Vinte e seis milhões de brasileiros pobres na fila do “auxílio emergencial”, um quarto de um mísero salário mínimo. Os encarcerados continuam em quarentena perpétua nas masmorras medievais. Aqueloutros de “colarinhos, cuecas e bermudas brancas” estão em quarentena. Domésticas não tem quarentenas, mas desemprego. Deliveries turbinados de restaurantes, farmácias e lojas de pets, não tem quarentenas. Gastronomia sofisticada “in home” para os que podem comprar. Todos os dias são domingos e feriados. Proventos e dividendos depositados pontualmente.

Academia na “laje da varanda” da “comunidade vertical”, com vista para o mar. Banho de sol na “laje do closet”. O banho de sol da manhã para corar. Não sairei com a “cara pálida”, quando o coronavírus partir. Sol da vitamina D na “laje do sótão”, para manter a imunidade. Luar noturno, papos no whatsapp, bebidas e petiscos. Cresceu a venda de vinhos e prosecos. Revistas e jornais virtuais disponíveis e gratuitos. Música, leitura, oração, escrita, pastores e meditação disponíveis. Não irei jogar na “roleta russa” da vida em hospitais colapsados. Estou na quarentena vertical da minoria. Indignação contida e covarde com os invisíveis, pobres, miseráveis e desiguais, carentes de quarentena e elementares direitos de sobreviver. Normalizada a passividade de lideranças responsáveis, aqueles quem tem o dever moral de cuidar das pessoas. Continuarei com as máscaras, não quero enxergar a realidade nua e crua. A verdade pode ser temerária.

 * É engenheiro agrônomo e advogado

 

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