Por Ricardo Nunes *
Desde o início da invasão portuguesa, em 1500, este país esconde, em velhas gavetas de palácios, embaixo de antigos colchões de quartéis e sob os muitos tapetes da casa-grande, episódios de extrema violência e opressão contra povos indígenas, negros, caboclos e mamelucos. A relação da elite econômica e política brasileira com esses povos foi pautada pela exploração brutal de seus corpos, que sustentaram, com trabalho forçado, o desenvolvimento de uma economia colonial cruel e desigual.
Genocídios sucessivos de indígenas e negros escravizados não são contados nas escolas. O massacre de Canudos (1896–1897), onde o Exército, com oito mil soldados fortemente armados, assassinou vinte e cinco mil sertanejos pobres de uma comunidade que ousou buscar uma alternativa própria de sobrevivência, nunca resultou na responsabilização de ninguém por esse episódio histórico e cruel.
Os diversos golpes militares, desde a Proclamação da República, culminando com a ditadura militar de 1964, tiveram todos os seus responsáveis anistiados, perpetuando, assim, a impunidade.
O Brasil é um país incapaz de elaborar o seu próprio passado. Ele é assombrado por seus fantasmas, que não conseguem mais esconder-se em gavetas, colchões e tapetes.
Quando você fala com um grande empresário, não está falando apenas com ele. Está falando também com bandeirantes e espancadores de escravos que, de certa forma, se encarnam nessa figura. Quando você conversa com parentes no almoço de domingo, também está lidando com fazendeiros escravocratas que permanecem vivos em nossa memória social. Isso não é apenas uma figura retórica. Essa realidade nos mostra a incapacidade brasileira de se livrar de um passado autoritário, ditatorial e brutal. O racismo estrutural e a desigualdade social que perduram até hoje são consequências diretas dessa omissão histórica.
De fato, a ditadura nunca passou. O Brasil nunca fez um acerto de contas com a ditadura militar. Nunca houve um ditador preso. Não há nenhum torturador na cadeia. Não há nenhum torturador julgado.
O que vemos hoje na política brasileira é a encarnação dos piores fantasmas que ainda vagam por nossa sociedade, aqueles que o Brasil nunca teve coragem de confrontar ou encarar diretamente.
Segundo o filósofo Vladimir Safatle, a consciência reflexiva de um povo se constrói a partir da compreensão de seus próprios crimes.
Estamos, neste momento, diante de uma pequena, porém significativa, oportunidade de reparar grandes danos recentes de nossa história. Que sejam julgados e presos todos os culpados.
* É graduado em Arquitetura pela Universidade Federal de Pernambuco(1976), mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal de Sergipe(2005) e especialista em Planejamento Urbano pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas(1983).