Por Lelê Teles *
Sim, é possível amar um animal e desprezar um ser humano, basta você humanizar um e desumanizar o outro.
Hitler amava sua cadelinha, a Blondie, mas tratava os judeus com brutal crueldade, como se fossem, estes, uma gente desprovida de humanidade.
E por falar em Blondie…
Hoje é aniversário da Xuxa e ela acordou mais leve. Graças a uma ajuda que veio da periferia.
Quem diria?
É que a Maria das Graças Meneghel gravou um vídeo nesta madruga, sem olheiras, onde tentou se retratar de sua abjeta eugenia.
A loira havia defendido usar seres humanos encarcerados para experimentos científicos, ouça aqui o disco dela girando ao contrário:
“Na minha opinião, existem muitas pessoas que fizeram muitas coisas erradas e estão aí pagando seus erros para sempre em prisões, que poderiam ajudar nesses casos aí, de pessoas para experimentos”.
Xuxa, uma senhora cinquentona, acredita que existe prisão perpétua no Brasil! Quando ela vai aprender?
Em sua fala abjeta, a rainha dos baixinhos mostrava empatia com os animais que, segundo ela, sofriam sendo cobaias e, por isso, deveriam ser substituídos por essas não pessoas, as encarceradas.
Bem, sabemos que o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, aqui quase 800 mil seres humanos estão trancafiados atrás das grades (Conselho Nacional de Justiça, 2019). De cada três presos, dois são negros (Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020); a esmagadora maioria é da periferia.
E mais, mais de 40% dessas pessoas estão presas provisoriamente e sequer foram julgadas – não dá nem pra dizer que são criminosas – e uma grande parte dos presos foi pega com pequenas porções de drogas, a mesma quantia encontrada no bolso da calça de muita gente jovem branca e endinheirada.
E livre!
Monstrificar os presos, desumanizá-los, é um projeto.
Sabemos que os negros chegaram ao Brasil com grilhões atados aos braços e ao pescoço, e desde então o Estado não parou de construir prisões para alojá-los.
Na cadeia também estão os inimigos do poder, os subversivos, os revolucionários, os que incomodam.
Em um passado recente, muitos foram torturados e mortos nas masmorras públicas. Foi lá que Vladimir Herzog foi suicidado.
Um ex-presidente acaba de passar 580 dias atrás das grades até que a Justiça resolveu determinar que ele é inocente.
Quase vira uma cobaia!
Rafael Braga e Rodrigo Pilha não foram presos por serem bandidos.
A blondie acredita que uns seres humanos podem ser sacrificados para salvar outros. É o argumento que ela usa para que prisioneiros sejam cobaias: “acho que pelo menos serviriam para alguma coisa antes de morrer, para ajudar a salvar vidas com remédios e com tudo.”
Não é de cair o cu da bunda uma declaração dessas?
É claro que houve quem a aplaudisse, o gado mocho verdeamarelo adorou a ideia.
Mas entre os que aplaudiram Xuxa e os que a condenaram, sobressaiu-se a fala de um jovem da periferia, por sua empatia cristã, alienada e dócil.
O sujeito se chama Anderson França e ele estava acordado, às duas e meia da madruga, quando recebeu o vídeo de Xuxa e não pensou duas vezes:
“Eu vou dizer uma coisa que não devia. Isso é papel de quem cuida da imagem dela, mas eu vou fazer isso porque eu não quero ver mais uma pessoa, referência de tanta coisa, ter a reputação destruída. E em tempos de internet, cancelamento, linchamento, sabemos que isso afunda carreiras…”
E o jovem escritor e roteirista dá um conselho a Xuxa, pede para que ela, antes de dormir, grave um vídeo porque, assim, ela pode evitar que sua carreira afunde. Veja você.
Não é estranho que no meio desse tiroteio todo alguém tire um bloco de notas e escreva, com toda a tranquilidade do mundo, que Xuxa é “referência de tanta coisa”, e que pode “ter a sua reputação destruída” e ser chamada para sempre de racista?
A milhardária achou sensato. Ainda mais que a consultoria veio no meio da madruga e de graça meneghel.
Xuxa, depois de ouvir todas as pessoas pagas por ela para cuidarem de sua imagem, foi aconselhada a seguir os conselhos do jovem escritor.
E lá foi a loira para internet pra salvar sua reputação. Citou o jovem, mas disse apenas o nome dele, talvez ela nem tenha se preocupado em saber quem ele é e o que faz; a mise-en-scène era mostrar-se humilde, ouvir a bronca e se retratar.
Anderson deu um presente de aniversário para a Xuxa.
A troco de quê?
Vejamos, Xuxa começa o vídeo/retratação dizendo: “queria pedir desculpas, não usei as palavras certas…”
Note que Xuxa não pediu desculpas pelas ideias, mas pelas palavras usadas para expressar essas ideias. E chegou a dizer que não fala sobre negros, mas sobre essas pessoas “que estupram crianças”.
Pessoas que estupram crianças são a minoria da minoria dos encarcerados, o que Xuxa faz é continuar a monstrificar as pessoas privadas de liberdade: são uns animais, uns selvagens, inumanos, incivilizados e incivilizáveis.
Xuxa mostrou que é uma abominação política, ética e cognitiva.
E Anderson mostrou que é pura empatia.
Quando morrer, Anderson ganhará um busto/vivo no céu cristão, com uma placa pendurada no pescoço: “enquanto viveu, foi empático”.
No pedido de desculpas, Xuxa não falou na cor dos presos, na quantidade de pessoas encarceradas, nas condições desumanas em que se encontram, na saúde e na má alimentação dessas pessoas, no sofrimento das mães e familiares delas, nada.
Nem mexeu no mouse pra isso.
Dá pra ser empático com anti-empáticos? Bem, é uma escolha.
Não sei se França se deu conta, mas toda essa gente que lota as prisões já foi criança um dia – todos fomos, menos Adão e Eva –, e todos fomos diretamente afetados pelos programas da Xuxa na televisão, que destruía, com sua acintosa eugenia paquítica, a autoestima e a autoconfiança de milhões de crianças pretas e pardas.
A periferia tá cheia de problemas, as cadeias cheias de sujeitos periféricos e sujeitas periféricas, a periferia tá com fome e com medo do vírus, a periferia tá sem emprego, tá deprimida…
E um cara, acordado no meio da madrugada, preocupado com a reputação e a carreira da Xuxa…
E o cara é da periferia.
Ah, senta lá, Cláudia.
Palavra da salvação!
* Formado pela Universidade de Brasília, Lelê Teles é jornalista, roteirista e publicitário. É roteirista do programa Estação Periferia (TV Brasil) e da série De Quebrada em Quebrada (Prodav 09). Sua novela, Lagoas, foi premiada na Primeira Bienal de Cultura da UNE. Discípulo do Mestre Cafuna, prega o cafunismo, que é um lenitivo para a midiotia e cura para os midiotas.
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